Poema panfletario — para um natal a la page

(sobre “Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto”,
de David Mourão-Ferreira)

Vai morrer esta noite à meia-noite e tonto 
de tanto olhar nas montras a ovelha lírica
os burros de neónio sob o céu postiço.

Vai morrer esta noite à meia-noite e tanto.
E nem a vaca psicadélica fará
do seu bafo o sopro que ressurge o barro,
o pó, na forma com que os dedos o modelam.
Vai morrer esta noite à meia-noite, enquanto
o seu duplo robótico ergue a perninha
à distância comandada e molha as palhas,
e os sinos de belém bimbalham jingle bells
o berloque a preço de fim-de-estação
o detergente do sovaco a passa o penso
rápido ou outro os candies o cabaz
as laranjas que já foram da lapinha
e agora se alaparam no rumor dos dias
e mais não trazem do que o sabor a plástico
— que essa coisa do “gosto no pão do povo”
deu uvas no verso de um poeta novo
até aos dentes de trincar nozes de fogo.

Vai morrer esta noite à meia-noite. E pronto !
E um pai natal de gravata e accent do sul
ou regional virá nos feixes, sobre as ondas
anunciar a boa-nova a estes tempos:
o fontanário as fitinhas os quilómetros
de asfalto o coreto os milhões do PIB
as siglas várias da pedincha natural
— em suma, os Fahrenheit que medem o sucesso.
E os Anjos Adjuntos e mesmo os Sem Pasta,
no beija-bota que assegura a eternidade
terrena, entoarão em coro o estribilho:
“Glória ao Senhor na terra, paz a deus na lonjura”. 

Urbano Bettencourt/Natal de 93

Para não sermos “Calibans” …

Entre dicotomias como a paixão e o ódio, a liberdade e a escravidão, a riqueza e a pobreza, o prazer e a dor, a alegria e a tristeza, existe um imenso universo de outros sentimentos e conceitos. Ele é composto por estrelas de diferença, gradações dialéticas, contradições, paradoxos.

Resgatar a imagem deste universo é como pingar uma gota de óleo num copo d’água. As diferentes gotículas desmembradas pairam sobre a superfície, resistindo uma diluição. O mesmo tem acontecido ao longo da história dos diversos povos da Terra. São inúmeras sociedades disciplinadas por padrões políticos, religiosos e econômicos, onde a igualdade é a maior meta, o copo d’água. Essa igualdade está chapada em dois sistemas repressores principais: o da educação e o da produção. São discursos autoritários, dos detentores do poder que, em ambos os processos, ditam os padrões a serem seguidos, copiados e/ou imitados pelas pessoas. Nesse tipo de fluxo estúpido, os artistas contestadores sempre tendem a desempenhar o papel das gotículas de óleo, jamais mesclando-se: porque têm algo muito diferente em si, porque recusam-se a diluir-se no todo, a desaparecerem tal qual lixo cósmico. Viajam para o infinito, sem porto de chegada definitivo. Viajam os seus sonhos de resistência, buscam espaços especiais, contemplando, além do horizonte turvo, lugares de diferença.

Quando, em 1997, Dario Fo dedicou o seu prêmio Nobel a todos os artistas perseguidos do mundo, fez, ao mesmo tempo, um ato político e um pronunciamento de incentivo à diferença. Fo sugere que, se não mantivermos viva a idéia de transcender o conhecimento já institucionalizado, estaremos trabalhando contra o desenvolvimento das artes.

Aplicando esta reflexão ao teatro brasileiro, a propósito do final do VII Festival de Curitiba, fica um vazio imenso em relação ao que possa vir a ser uma produção cultural com cara de Brasil. Tivemos adaptações interessantes, por causa da apropriação de materiais e signos culturais brasileiros, em Ella e Sob o Sol em meu Leito. A pesquisa do Grupo Pia Fraus Teatro merece todos os destaques pela sua profundidade filosófica. Na maioria das outras peças nacionais não houve, porém, algo que parecesse um contra-discurso brasileiro, isto é, algo que transcenda a submissão cultural e articule, filosoficamente, um imaginário brasileiro. Falta aquela ambição maravilhosa e paradoxal de Augusto de Campos, em seu poema ‘Póstudo’ publicado, na Folha de São Paulo, em 27/01/85:

 

QUIS
MUDAR TUDO
MUDEI TUDO
AGORAPÓSTUDO
EXTUDO
MUDO

A submissão cultural é um problema antigo, considerado muito bem por Caetano Veloso em seu livro Verdade Tropical (São Paulo: Schwarcz, 1997; ex. p. 114.) No Festival de Teatro de Curitiba, em 1997, a peça Viva o Povo Brasileiro, dirigida por Regina Bertolla, elaborou, através da pesquisa antropológica, uma grande representação das contradições decorrentes do multiculturalismo em nosso país.

Caliban, em 1998, seria uma peça típica para a contestação, mas, ao invés disso, apresenta a coitadização (sic, neologismo) do índio brasileiro, entre a submissão e o desejo de vingança, tão vítima do colonialismo quanto o personagem de Shakespeare. Para a platéia de descendência européia, resta a catarse pela culpa e a vergonha de ser branca. Para a platéia de outras etnias, talvez uma sensação de espanto e desconforto. De qualquer ponto de vista, um profundo constrangimento histórico.

O grande desafio da não-submissão cultural consiste em não aceitar as tarefas simplistas do imitar, copiar e repetir. Criar a partir de paradoxos e contradições, transcodificar e encontrar discursos alternativos nas artes, por outro lado, não significa desdenhar ou rejeitar conhecimento prévio, mas reelaborá-lo filosoficamente, para além do canibalismo.

 

Ph.D. em Literatura Dramática, EUA. Professora do Depto. de Teatro da Faculdade de Artes do Paraná (FAP, Curitiba). Membro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística, Grupo de Trabalho de Dramaturgia e Teatro (ANPOLL/ UNICAMP).

Autor por Conta de Outrem

A formação de um mercado literário em Inglaterra nos séculos XVII e XVIII tornou‑se um objecto central da história cultural produzida na última década. Para lá da grande quantidade de informação económica e bibliográfica compilada, a história social da produção e do consumo literários tem-se revelado muito produtiva na análise das representações. Este estudo da economia externa e interna das formas literárias pode integrar‑se, por seu turno, numa prática de investigação mais compreensiva e interdisciplinar da materialidade do processo cultural. É precisamente esta perspectiva, naquele contexto de investigação, que aqui tento adoptar em relação ao período crucial da formação do mercado literário moderno em Inglaterra.

Descrevo a constituição do mercado literário, que decorre da tecnologia tipográfica e da comercialização dos textos impressos. A regulação interna do sector, o crescimento do consumo literário, o desenvolvimento do teatro, do jornal e do romance, a definição legal da propriedade literária e a profissionalização dos autores e autoras são aspectos essenciais na caracterização dos primórdios do mercado moderno. Trato também a representação do mercado em textos de vários géneros, realçando imagens negativas da autoria comercial. Foram múltiplas e frequentes as figurações dos agentes e práticas do comércio das letras desde o último quartel do século XVII. Destaco o livro herói-cómico de Alexander Pope The Dunciad, que funciona como um prisma a partir do qual foram seleccionadas imagens anteriores e posteriores, nos vários géneros (poesia, teatro, ópera, romance, periódico e gravura).

Um dos elementos mais evidentes para quem tentar relacionar as condições de produção literária e as representações da actividade literária é a contradição entre a crescente comercialização da actividade, por um lado, e a negação da sua natureza pecuniária, por outro. Esta contradição parece ser estruturante da ideologia que representa os mercados do teatro e da edição nos múltiplos exemplos considerados. A compatibilização entre escrita e dinheiro, cuja relação directa foi consequência do desenvolvimento do comércio literário como sector económico especializado, ocorreu de forma sempre ambígua, uma vez que a denegação do carácter económico da actividade passou a constituir um dos elementos que definia a natureza da própria actividade. Mesmo a progressiva redefinição do direito de cópia como propriedade literária, assente na originalidade e na personalidade do autor, contribuiu para ocultar a natureza económica da comercialização da imaginação e da escrita.

A ironia contida na afirmação atribuída por James Boswell a Samuel Johnson de que “Só um estúpido alguma vez escreveu que não fosse por dinheiro” assinalava uma relativa legitimação da independência do autor profissional, evidente na segunda metade do século XVIII, mas ecoava ainda o tradicional conflito entre o comércio e a escrita. O autor continuou a ser figurado de modo equívoco e ambivalente: ora como o negociante que traficava subscrições quiméricas de obras que os seus clientes não chegavam a ver, como fez Charles Churchill em relação ao próprio Samuel Johnson — “Aos subscritores sabe bem lançar o isco,/ Fica-lhes com a massa—mas que é do livro?” [1; ora como a vítima assalariada do editor, que o obrigava a produzir a máxima quantidade de escrita pelo preço mais baixo, expropriando-o do seu trabalho segundo a lógica capitalista inerente à manufactura tipográfica; ora como o alto criador a quem só a independência de meios podia garantir a excelência literária.

Idêntica equivocidade e ambivalência caracterizou a figuração dos editores: ora gananciosos capitalistas, sempre dispostos a trespassar a propriedade alheia em benefício próprio, autênticos piratas do papel capazes de inventar toda a espécie de mercadorias literárias e até mesmo de matar os autores à fome; ora vítimas de um mercado pequeno e incerto, sujeito à concorrência desleal de editores sem escrúpulos e aos caprichos imprevisíveis dos leitores; ora patronos generosos de uma nova era das luzes literária, substituindo-se aos aristocratas na promoção e defesa dos artistas ao criarem as condições económicas para que estes pudessem ganhar a vida a escrever. As fabulosas fortunas dos principais editores literários setecentistas, como Jacob Tonson (1656?-1736), Jacob Tonson Jr. (1680?-1735), Thomas Osborne (m. 1767) e Robert Dodsley (1703-1764), confirmam o crescimento do mercado livreiro e a capitalização da propriedade literária.

A participação das mulheres no mercado literário, como autoras, editoras, tipógrafas, livreiras e leitoras, é outra das transformações em curso com reflexos evidentes nas representações das actividades e agentes das letras. À efeminação do mercado, como estratégia para denegrir a produção comercial em geral, segue-se a feminização da escrita das mulheres, como forma de controlar a linguagem das mulheres e legitimar a sua profissionalização. A impropriedade sexual dos actos de publicação das mulheres e a fertilidade descontrolada da volúpia comercial, que gerava sempre novas mercadorias, são duas facetas da efeminação do comércio e do crédito no domínio específico do livro, da imprensa e do teatro. A legitimação da escrita das mulheres dependeu assim da conciliação entre a escrita, a remuneração e o código das esferas separadas.

A alteração da economia da escrita, com a passagem da dependência pessoal do mecenas para a dependência de um mercado anónimo de leitores, é apenas uma das dimensões das transformações em curso. A expansão do modo de reprodução tipográfica interferiu também com o processo político, contribuindo para a constituição de uma esfera pública burguesa, particularmente através da invenção dos géneros periódicos. Ao construir uma narrativa simultânea e continuada sobre o presente histórico, o jornal tornou a linguagem impressa parte do processo político. O desenvolvimento da imprensa periódica, a parlamentarização do sistema político e a partidarização do Parlamento foram processos históricos paralelos na Inglaterra pós-1688.

Tais processos interferiram na transição prolongada da actividade literária do mecenato aristocrático e monárquico para o mercado. A partidarização do patrocínio estatal, visível na atribuição de pensões e cargos aos autores, em reconhecimento pelos seus serviços, méritos ou sucessos literários, seria uma das manifestações deste cruzamento particular entre o mercado da imprensa e a esfera política numa sociedade cada vez mais comercializada. Foi por isso que o jornalista mercenário, pronto a vender a sua pena ao melhor preço, se tornou uma das imagens dos novos autores forjada nas primeiras décadas do século XVIII. De igual modo, a visibilidade do espectáculo teatral como mercadoria permitiu que o dramaturgo fosse uma das primeiras classes de autores a ser identificada com a comercialização da letras, ainda nas últimas décadas do século XVII.

A longa persistência dos estereótipos característicos de Grub-Street, delineados nos seus traços essenciais entre 1700 e 1730, revela a natureza prolongada da transição e a função ideológica da imagem negativa do comércio das letras nesta transição. A negação da natureza económica da actividade manteve-se desde então como um dos elementos organizadores do campo literário. A caracterização da nova ordem literária e cultural foi objecto de um programa satírico levado a cabo pelos autores scriblerianos [2em panfletos, jornais, romances, poemas e peças de teatro, ao longo daquelas três décadas. Esta intervenção colectiva permite observar a íntima relação entre o processo político e o comércio literário que caracterizou este momento de transição. Muitas das imagens então construídas, ou redefinidas, perduraram ao longo do século, como se pode confirmar em textos de Samuel Johnson, Oliver Goldsmith e Richard Sheridan, autores cuja identidade pública dependia  mais assumidamente do mercado da escrita.

As vicissitudes do autor contratado foram descritas por Oliver Goldsmith em “The Distresses of an Hired Writer”, artigo publicado em Abril de 1761 na revista The British Magazine (pp. 198-200). Este texto, que compendia lugares-comuns da crítica à situação laboral dos autores e aos efeitos do comércio das letras sobre a produção literária, revela a persistência da imagem negativa forjada na década de 1720. Muitas das queixas ventiladas seriam já algo anacrónicas nesta data. De resto, o mesmo Goldsmith escreveu em 1760-61 vários artigos em defesa da profissionalização e da remuneração dos autores, salientando as vantagens literárias da especialização. “As Dificuldades do Autor Contratado” recapitula tópicos que, desde o último quartel do século XVII, tinham passado a caracterizar o labor literário. Para Goldsmith, as transformações em curso decorreram da transformação da escrita num ofício mecânico e das consequentes alterações do ritmo e das relações de trabalho. A relação assalariada entre editor e autor, instituída por um mercado que é preciso alimentar constantemente com novas mercadorias, substituíra o patrocínio. Esta transformação das relações sociais de produção e do ritmo de trabalho tivera consequências genéricas: a poesia fora substituída pela política e pela crítica, uma alusão ao mercado cada vez mais importante da imprensa periódica. A lógica da expansão comercial levava mesmo a que os autores alienassem o seu juízo crítico, vendo-se constrangidos a promover um livro para servirem o editor de quem dependiam.

A relação monetária mercantil perturbou também as hierarquias sociais, uma vez que o editor, que dirige a produção e interfere na escrita, tem geralmente uma instrução rudimentar e inferior à do autor. Além disso, a própria classe dos autores tem agora outra composição social: Goldsmith contrapõe o poeta, isto é, a identidade autoral clássica, ao autor, isto é, à identidade autoral estabelecida pela participação no comércio das letras. Integrando-se no processo genérico de valorização das formas de riqueza comercial numa economia capitalista, a arte literária deixara assim de ser apanágio dos gentlemen, tanto no caso dos editores como no caso dos autores. A oposição estabelecida entre a aristocracia conferida pela condição de autor e o comércio livreiro, que opõe o capital cultural do autor ao capital comercial e financeiro do editor, via-se perturbada pelo reconhecimento da pobreza material dos autores, isto é, pela alteração da condição social dos novos autores.

A reforma por que Goldsmith anseia levaria à restauração daquilo que ele designa como a idade de ouro da República das Letras, incarnada pelos autores do reinado de Ana. Mas os autores escolhidos como exemplares (Pope, Swift, Addison, Steele, Rowe, Congreve e Prior) tinham sido afinal participantes activos na transição da República para o Mercado das Letras. A mercantilização da inteligência e da imaginação, e a consequente desvalorização da mão-de-obra dos autores, parece assim comprometer a renobilitação da função autoral imaginada por Goldsmith. A condição económica que gera a autoria, ou seja, a comercialização de textos impressos com o nome do autor, tornara a imagem do autor independente um mero recurso retórico do escritor assalariado, cuja identidade social depende doravante da associação particular entre comércio e literatura. É justamente da publicação e circulação de discursos impressos sob a forma de mercadorias que a autoria passa a constituir um efeito.

As representações do mercado, tematizado de forma directa e indirecta em inúmeras produções, mostram a percepção coeva das transformações em curso no sector literário. A reorganização da produção e da circulação, desencadeada pela formação de um mercado das letras, e uma série de mudanças formais, genéricas e estilísticas da escrita são os dois conjuntos principais de alterações encenados em poemas, romances, jornais, revistas, gravuras e peças de teatro. O desenvolvimento de novos géneros, como o periódico de ensaio e o romance, surge assim como resultado da exploração de condições de produção que favoreciam a invenção de mercadorias literárias. O recurso frequente a formas paródicas da sátira parece ter constituído também uma manifestação do confronto entre os géneros clássicos e o novo mercado do livro e do teatro.

A comercialização da literatura persiste como um tema de escrita constante, e em geral bastante rentável, durante este período. A comercialização do teatro, por exemplo, que é o tema da peça The Rehearsal, representada em 1671 e publicada em 1672, surgiu em várias ocasiões no palco setecentista, como aconteceu com The Author’s Farce, em 1730 e 1734, e The Critic, or a Tragedy Rehearsed, em 1781. A comercialização da escrita foi também objecto de muitos poemas, de A Satyr (1679), de John Oldham, e Mac Flecknoe (1682), a The Dunciad (1728, 1729, 1743) e The Rosciad (1761). A transacção como linguagem das relações sociais, políticas e sexuais foi encenada em The Beggar’s Opera(1728). As transformações do modo de produção literário motivaram ensaios e artigos na imprensa periódica, por exemplo, em The Grub-Street Journal (1730-37), The Rambler (1750-52), The Covent-Garden Journal (1752), The Idler (1758-60) ou no suplemento do jornal The Public Ledger (1760-61). A autoria das mulheres foi celebrada em poemas como The Feminiad (1754)Vários romances, como Tom Jones (1749) e Tristram Shandy (1759-67), representaram a condição económica do escritor, tornando-a parte da sua estrutura narrativa ou metanarrativa. Inúmeros panfletos reflectiram sobre as condições de produção literária, como Soliloquy; or Advice to an Author (1710), An Author to be Let(1729), The Case of Authors by Profession (1758) e An Inquiry into the Present State of Polite Learning in Europe (1759). Pinturas e gravuras, como A Scene from The Beggar’s Opera (1729) e The Distrest Poet (1737, 1741), retrataram o comércio social e literário. Artigos e panfletos diversos, como An Enquiry into the Nature and Origin of Literary Property (1762) e A Vindication of the Exclusive Right of Authors to their own Works (1762), debateram o problema da propriedade literária.

Estas e outras representações são analisadas como sinais das transformações em curso no sector, no contexto da criação de uma sociedade de mercado. A caracterização da produção e consumo literários, assim como o conhecimento da sua representação em vários géneros e formatos, devem ser integrados no processo de comercialização da sociedade e nos contextos discursivos que originaram vocabulários e ideologias para representar a natureza e os efeitos da comercialização da sociedade. Um dos contextos discursivos mais relevantes na representação do comércio literário nas primeiras décadas do século XVIII é, sem dúvida, o contexto político da progressiva redefinição da virtude republicana através da legitimação do comércio como instrumento de transacções culturais e de refinamento do indivíduo, tal como foi caracterizado por J.G.A. Pocock. Com a comercialização da sociedade nos finais do século XVII e inícios do século XVIII, o pensamento político sofreu uma complexa restruturação: ao paradigma legal do direito e da propriedade opôs-se o paradigma republicano da corrupção e da virtude. A conciliação das novas formas de propriedade e de acção política com a virtude republicana teria sido feita através do conceito de manners. O comércio podia assim ser representado como instrumento civilizador de refinamento das paixões através da aquisição e uso de objectos.

É visível neste discurso a analogia entre as questões levantadas pelo patrocínio do governo às formas de propriedade mobiliária, depois da criação da Dívida Pública em 1693, e as questões levantadas pelo patrocínio do governo aos autores numa situação de expansão das formas de propriedade e de capital literários. Esta dependência política numa esfera pública comercializada contribuiu para reforçar a ideologia do autor independente. A estabilidade das formas e géneros clássicos, cuja figuração equivaleria à figuração das formas de propriedade real enquanto fundamento da autonomia política do indivíduo, surgia ameaçada pelas formas e géneros inventados pelo mercado. Alexander Pope pôde assim figurar a corrupção da ordem política, materializada na proliferação de ficções financeiras e na dependência de interesses por estas geradas, e a corrupção da ordem literária, materializada na concorrência feroz por novas mercadorias literárias, como efeitos equivalentes da comercialização da esfera social.

A definição da propriedade literária, uma das novas formas de propriedade semelhante aos títulos mobiliários, significou o reconhecimento da natureza particular desta forma de propriedade. Foi o desenvolvimento do comércio livreiro que levou a que o direito de cópia tivesse que ser redefinido como propriedade literária, desvinculando a ordem do discurso do suporte material particular que a continha. A semiprofissionalização e profissionalização dos autores, dependente do desenvolvimento do periódico, do teatro, da poesia e do romance, viu-se reforçada pelo reconhecimento desta forma de propriedade. Embora persistissem alguns dos estereótipos criados pelo círculo scribleriano, as representações do mercado a partir de meados do século XVIII revelam uma crescente legitimidade da profissionalização e do motivo pecuniário. Apesar dos retratos negativos, a representação do crítico profissional e do lugar da imprensa periódica no sistema de reconhecimento literário revela idêntica legitimação.

Em Tristram Shandy, por exemplo, embora se encontrem compendiados tópicos tradicionais, a representação do mercado perdeu toda a hostilidade. Sterne parodia as técnicas narrativas e estilísticas de vários géneros, comprazendo-se com a sua natureza comercial. O narrador surge mesmo como uma figuração do autor que não se coíbe de aumentar indefinidamente o seu texto porque escrever se tornou o seu ganha-pão. Na sua condição de paródia do romance e das técnicas realistas em desenvolvimento, capaz de encenar a escrita como um produto de transacções entre autor, leitor, editor e crítico, Tristram Shandy constitui um contraponto às representações scriblerianas do mercado. Exacerbando a materialidade tipográfica e comercial do livro, Laurence Sterne expõe as convenções genéricas e a natureza económica da mercadoria literária.

Uma característica parece, de resto, aproximar as obras dos scriblerianos e afins, nomeadamente as que aqui trato com maior detalhe: o grau de autoconsciência e reflexividade que expõe os seus próprios processos, desnudando os mecanismos de construção, nomeadamente através do efeito distanciador da ironia e da justaposição do heróico e do doméstico, que é parodicamente explorada com objectivos satíricos. Nesta medida, são obras atípicas daquilo que constitui o grosso da produção do mercado, embora não deixem de ser muito influenciadas pelos novos géneros comerciais e de exercer, por sua vez, uma influência considerável na sua condição de mercadorias inovadoras, capazes de combinar estruturas alegóricas clássicas com técnicas de notação realista moderna. A esta tradição neoclassicista, que constitui o cerne deste estudo, podem opor-se autores como Defoe e Richardson, que adoptaram abertamente as mudanças em curso.

A natureza particular da representação do mercado literário no momento da sua formação parece ter sido determinada por duas lógicas: por um lado, pela articulação dos dilemas originados pela especialização da actividade como sector económico próprio (questões de propriedade, relações sociais de produção, mercantilização da linguagem, oferta e procura, alteração das formas, géneros e estilos, surgimento de novos públicos, etc.); por outro lado, pela refracção das transformações em curso através de ideologias que vêem no comércio a dissolução dos laços sociais e da esfera política. Assim, a alteração das formas, géneros e estilos seria, a um nível, o resultado do dinamismo do mercado; a outro nível, o sintoma da dissolução da autoridade no domínio literário. A pobreza dos autores seria, a um nível, a constatação da sua nova origem social, dos rendimentos limitados do mercado e do excesso de mão-de-obra; a outro nível, a dependência económica e política que degradava a expressão literária.

O tratamento de obras que figuram vários aspectos da organização do mercado foi organizado a partir de um núcleo limitado. Este núcleo é constituído pelas imagens scriblerianas e, em especial, por The Dunciad. Parte dos exemplos seleccionados partilha certas características: tematiza a natureza material e social da sua produção, ou da imprensa em geral, no interior do discurso, ou seja, é auto-referencial em relação à criação e à publicação; é, no respectivo género ou forma, acentuadamente experimental em relação às possibilidades das representações impressas ou teatrais; evidencia significativas contradições ao relacionar o dinheiro e a escrita; a história da sua edição e leitura pode ser ligada a transformações no comércio das letras; enquadra-se em diversos segmentos do mercado, da edição subscrita ao panfleto e ao artigo de jornal. Trata-se pois de um estudo articulado em torno de obras de transição de um grupo de autores conservadores. Esta natureza transicional é manifesta na ideologia, nas características genéricas e nos modos de comercialização.

Portugal vai alterar lei de jogos de casino online e apostas desportivas

O governo de Portugal vai rever as leis de jogo do país em 2019, informou a mídia local na sexta-feira. O país ibérico regulamentou o seu mercado de jogos de casino online em 2015 e abriu-o oficialmente para operadores internacionais no verão de 2016, quando foi emitida a primeira licença de jogos de azar online. Uma lista de todas as operadoras de cassino on-line que podem operar em Portugal pode ser encontrada em https://casino-online-portugal.pt.

No final da semana passada, os legisladores portugueses apresentaram o plano orçamentário para 2019. Entre várias outras disposições, o plano também contém emendas propostas à Lei de Jogos Online do país. Estes estão principalmente preocupados com a legalização da liquidez nacional e internacional para diferentes serviços de casino e apostas online.

No início deste ano, Portugal entrou num acordo de liquidez de poker online partilhado com a França, a Itália e a França. Este acordo permitirá ao país fundir o seu pool de jogadores de poker online com os outros países participantes.

De acordo com as emendas propostas às leis de jogos de azar existentes no país, Portugal poderá entrar em acordos semelhantes para outras atividades de jogos de azar on-line, como cassinos. Por outras palavras, os operadores de Portugal, tanto os casinos como as apostas desportivas, poderão partilhar os seus pools de clientes com outras marcas licenciadas pelo regulador de jogo local, o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ). Além disso, as operadoras licenciadas em Portugal poderão fundir os seus pools de jogadores portugueses com os pools de jogadores em outras jurisdições regulamentadas das quais detêm as licenças.

Se aprovadas, as propostas incluídas no plano orçamentário de 2018 serão desenvolvidas em um conjunto de regulamentações pelo SRIJ para que possam ser implementadas. Conforme relatado pela mídia local, um plano preliminar sobre as emendas de liquidez compartilhada já foi apresentado à Comissão Europeia e foi bem recebido pelos reguladores da UE.

Mudanças Tributárias

O novo regime de tributação do jogo online em Portugal tem sido alvo de críticas amargas desde que foi introduzido há mais de dois anos. O país usa o volume de negócios como base tributária em oposição à receita bruta de jogos de azar usada pela maioria das jurisdições reguladas da Europa. Isto faz de Portugal uma das jurisdições mais caras para as operadoras fornecerem seus serviços e, portanto, altamente sem atrativos.

A Remote Gambling Association tem sido um dos oponentes mais contundentes do regime de tributação do país e há muito vem pedindo mudanças na forma como os operadores licenciados são taxados. Parece que haverá certas mudanças de fato, mas as taxas de imposto estabelecidas provavelmente permanecerão as mesmas.

Actualmente, Portugal dedica operações de apostas desportivas a 16% no volume de negócios e as operações de casino, incluindo poker online, a 30%.

As emendas propostas no plano orçamentário para 2018 exigem certas mudanças no imposto sobre as chamadas apostas esportivas de odds fixas. Os operadores que apresentem essa opção de jogo continuarão a ser tributados no volume de negócios, mas as receitas fiscais geradas serão alocadas de forma diferente da distribuição atual da receita fiscal gerada pelos operadores de jogos de azar licenciados.

Crónica, um exemplo

Ir a Paris naquela semana começou por ser um grave problema. A conferência no Centro Cultural Gulbenkian tinha título suficientemente obnóxio — «Eça de Queirós, Machado de Assis: o paralelo obliterado» — para não requerer preparação específica. Porém, assim restando tempo devoluto, que livros levar, visto que chovia? Pensei nos três volumes da recente reedição de Domingos Monteiro, mas logo ao lado vários Tomás de Figueiredo pareciam gemer. E o Abel Botelho? Meu Deus, como ir a Paris sem o Abel Botelho? Ainda segurei resoluto o Teatro Completo de Carlos Selvagem, afinal bem mais resistível do que o Feliz Independente do Padre Teodoro de Almeida, que caiu da fila de trás da estante, arrastando a Harpa do Crente do bom Herculano. Por outro lado, relera João Araújo Correia há pouco. Afonso Duarte, Assis Esperança, Luís Cajão, Sidónio Muralha, Papiniano Carlos, Políbio Gomes dos Santos acotovelavam-se na estante, reclamando uma oportunidade. De supetão, já o táxi gania na rua, deitei a mão aos volumes preciosos do Marcelo Gama, poeta pseudo-symbolista e brasileiro que ninguém conhece, e eu também não, mas morreu por adormecer no bonde. Escolha errada, claro, porque não viria a ter tempo nem para Guilherme de Azevedo, já enfiado na mala de véspera (que diabo, sempre são Crónicas de Paris). No aeroporto, o de Lisboa, esqueci num café a maleta em que arrumara outros livros indispensáveis (um tratado de revisão da narratologia, um pequeno dicionário de semiótica, não fosse o diabo tecê-las, um ensaio de filosofia analítica sobre o problema da intenção, um ensaio de filosofia moral sobre o problema da intenção, uma desinteressante conferência de Popper, uma tese portuguesa de literatura comparada, quase inédita, um paralelo entre Bloom e Steiner da autoria de obscuro académico irlandês, três romances portugueses recentes e diversos recortes de recensões de livros de poesia portugueses recentes). Afortunadamente, a funcionária do café tinha assistido ao meu curso de Literatura Brasileira nas Caldas da Rainha, na semana anterior; foi-lhe fácil, detectado o esquecimento, localizar o voo e levar-me a maleta ao avião. Muito gentil. Também gentilíssima, a hospedeira, ou assistente de bordo, minha antiga aluna na Universidade Nova: teve a amabilidade de me reconhecer e a maior de me confessar, enquanto pousava o tabuleiro do rancho, que devia às minhas aulas a facilidade com que, muitos anos passados, ainda destrinçava as subtilezas da Poética de Aristóteles.

Compreendem que isto contribuísse para desvanecer o dissabor da mala perdida. E a viagem, por acaso, até decorreu sofrivelmente. Chegado ao aeroporto, o de Orly, encontro, primeiro, Nuno Júdice, que esperava Hélia Correia, afinal passageira do mesmo voo (o mundo vai sendo pequeno). E encontro depois, e foi o começo da canseira, o meu tradutor francês, Ken Vandermark, na verdade um canadiano generoso, radicado há muitos anos em Paris. Não era a mim que esperava (não o tinha avisado…), mas ao pai, sujeito que me pareceu um tanto antipático e vinha acabar em Paris as férias que começara em Lisboa. O Ken pulou positivamente de alegria e, para a explicar, logo sacou de uma lista de palavras que não conseguia traduzir para francês: alçapremar, assolapado, azoratado, braquígrafo, brequefeste, cacotecnia, deslendear, divertículo, embair, esquinado, esquístico, filodoxo, fímbria, e por aí fora alfabeticamente. Impunha-se ajudá-lo, e ali mesmo. Lá ficámos no aeroporto até ao entardecer, mal sentados, tentando encontrar termos franceses para cada caso português. Conseguimos, às vezes com certo embaraço de escolha. Confesso que receei, de começo, pela qualidade da tradução, tantas eram as dúvidas, mas Ken convenceu-me de que não era nada exagerada a minha noção da sua competência de tradutor. Alívio, claro. No entanto, que canseira…

De tal modo aliás, que mal tive tempo para largar a bagagem no hotel e correr a jantar com Derrida. Estava combinadíssimo. Não podia faltar, embora pudesse diferir a chegada: o homem tinha adiado a partida para Irvine para poder encontrar-me. Desilusão, porém; já não nos víamos há meses, e em vez de me esclarecer duas ou três perplexidades derivadas dos seus últimos livros — e que não lhe suscitaram interesse nenhum —, e depois de perguntar se era verdade que o novo primeiro-ministro tinha sido aluno do Steiner, ocupou o tempo todo a pedir-me notícias dos amigos portugueses, como está fulano, onde anda sicrana que não escreve, com quem casou beltrano, quem morreu, quem mudou de casa, quem se divorciou… Uma vulgaridade. Se calhar, contasse eu o modo peculiar como nos tornámos amigos, o que agora não calha, ninguém estranharia.

Demais, chovia, e muito. Já agora, vá, escreva-se tudo: entrei irritadíssimo na conferência, e errei logo a data d’Os Maias. Mau sinal. Em regra, a minha memória é prodigiosa, ao menos para datas, títulos e autores. (Cheguei a saber de cor a tábua bibliográfica de uma monografia sobre Os Lusíadas, só por divertimento.) A senhora da primeira fila, logo que corrigi e me desculpei — e foi logo —, fez um sorriso muito doce, deixou cair a mão num levíssimo gesto (um e outro, de resto, reiterados, até sublinhados, quando no final me pediu que autografasse exemplares de todos os meus livros, incluindo os esgotados, que carregava num saco indistinto da Fnac, talvez por pudor). Aí ganhei ânimo, e levei aquilo de enfiada, seguro e convicto. Muito cumprimentado no final, podia ter sido uma longa ou quando menos média noite de glória, ou de simples regozijo intelectual, não fosse a modéstia e a necessidade de largar dali para os Campos Elíseos, onde um grupo de críticos americanos e ingleses, apadrinhados e reunidos por dois franceses, Louis Sclavis e Michel Portal, me esperava num bistro esconso para um debate sobre… A Cidade e as Serras. Lá estavam Don Byron e Ben Allison, da Columbia, Dave Douglas e Myra Melford, de Yale, Muhal Richard Abrams, da UCLA, Anthony Braxton e Marty Ehrlich, de Berkeley, e até Joey Baron e Greg Cohen, da Johns Hopkins (além dos mais do que conhecidos Barry Guy, de Cambridge, Barre Philips, Evan Parker e John Surman, de Oxford). Um despotismo de cérebros! E que debate, que elevação, que capacidade de invenção… E a noite toda. Uma canseira.

Enfim no hotel, dir-se-ia ter alguém à espera no quarto: um homem sombrio, que julguei ouvir apresentar-se como Bento Santiago, ou Dom Casmurro. Era demais. Resolvi antecipar o regresso. Continuava a chover, até o presidente Bush tinha ido embora… Sabe Deus como consegui fazer a viagem sem encontrar ninguém conhecido e até folhear sossegado um jornal, que me deram no avião. Cheguei. No aeroporto, o de Lisboa, li os anúncios do Centro Comercial Colombo enquanto esperava pelas malas. Já em casa, soube que o vizinho do lado começara com obras, de resto ouviam-se os martelos no pico da excitação. Ocorreu-me que andava há semanas para chamar um canalizador. Sejamos claros: eram outros tempos. Ainda não tinha começado o mundial de futebol, o sr. Manuel Alegre decerto ignorava que lhe caberia imortalizar o Figo em rima predominantemente toante.

Desmi(s)tificar Derrida

Em vários momentos da sua carreira tem Derrida manifestado perplexidade em relação à realidade teórica e académica norte-americana. Há quatro anos atrás, num encontro com Rorty em que se discutia o tema “Desconstrução e Pragmatismo”, confessou a sua “incompreensão em relação ao que se passa nos Estados Unidos, quer se trate do pensamento de Rorty, ou do que se passa no seio do desconstrucionismo americano, ou de uma ignorância da minha parte em relação à sua tradição”. Esta confessada incompreensão nada tem a ver com ignorância: é sabido o quanto Derrida, desde o início, sempre investiu neste país; muito antes do famosíssimo colóquio “The Languages of Criticism and the Sciences of Man”, que colocou a “teoria crítica” e a universidade de Johns Hopkins na vanguarda da discussão académica no âmbito das humanidades, já Derrida por cá tinha passado várias vezes (uma das quais para semi-furtivamente celebrar esponsais com Marguerite Acouturier em Boston). Por outro lado, não me parece que releve da ignorância o bem informado testemunho que nos lega num texto de 1987, incluído na algo provocadora colectânea “The States of “Theory”:

O princípio da desordem taxonómica a que me venho referindo pode dar origem a traduções ordeiras e calculadas ou então a colapsos cómicos, com que por vezes deparamos em programas de cursos, palestras, às vezes em livros. É a serialização de coisas que são tão heterogéneas mas mesmo assim postas numa relação de co-incorporação contaminante e teratológica como a psicanálise, o pós-estruturalismo, o pós-modernismo, o feminismo, o Marxismo, etc. Esta teratologia é a nossa normalidade.

Esta teratologia tem um nome antigo: ecletismo. Atitude execrada nos meios filosóficos (e daqui o desconforto de Derrida em relação à realidade americana), o ecletismo conhece hoje em dia uma cotação elevadíssima no âmbito dos estudos literários norte-americanos, âmbito que, como é sobejamente sabido, é aquele em que a desconstrução tem ou teve o seu impacto mais assinalável. E este acidente da fortuna acabou por condicionar a leitura europeia da desconstrução, que, com raras excepções, repete as trivialidades e erros de perspectiva que hoje fazem parte do património linguístico de qualquer americano que tenha passado pela universidade. A associação da desconstrução ao pós-modernismo ou a uma variante de “teoria crítica” são apenas dois dos mais correntes clichés que circulam dos dois lados do Atlântico. E a boa fortuna do termo “pós-estruturalismo”, que, como o próprio Derrida assevera, era “desconhecido em França até ao seu “retorno” dos Estados Unidos”, é um sintoma indisfarçável da importância deste comércio transatlântico.

Recebido neste contexto, o livro de Joseph Kronick reúne todas as condições para poder vir a alterá-lo substancialmente. Para já, tem passado mais ou menos despercebido, não havendo dele ainda qualquer recensão digna de nota. Talvez se ressinta da sobre-exposição a títulos deste género a que têm sido votados os americanos nos últimos quinze anos. Mas este livro é de facto uma autêntica lufada de ar fresco para quem tenha vindo a seguir (na medida do possível) atentamente a literatura secundária que sobre a desconstrução tem surgido, ou tão só para quem, sem preocupações académicas, procura apenas entender o que se passa. E o que se passa é que finalmente alguém se dispôs a ler responsável e atentamente os textos de Derrida, no original francês (prática cada vez mais em desuso num país em que tudo o que é importante se traduz a menos de um ano de distância em relação à data de publicação original, e também sem dúvida devido à progressiva perda de importância da língua francesa no mundo), e as consequências deixam-se ver de imediato. O tom é marcado logo na primeira página: “Este livro tenta situar a “literatura” no pensamento de Derrida, o que é algo muito diferente de aplicar a desconstrução a textos literários ou de interpretar os seus escritos como literários” (1). Trata-se aqui de algo mais do que um mero esclarecimento heurístico. O que nos é indicado logo de seguida:

Desde logo, é necessário salientar que “literatura” ou “escrita literária” são termos frequentemente usados por Derrida num sentido muito diferente da nossa noção convencional de literatura. Não estou a propor aqui um estudo de “metodologia” desconstrutiva nem sequer um ensaio de crítica literária, mas antes uma leitura de “literatura” nos textos de Derrida. Com isto não pretendo dizer que os seus escritos, e nomeadamente Glas ou La Carte Postale são mais literários do que filosóficos, nem pretendo sugerir que a literatura enquanto tal desencadeia uma crítica ou uma desconstrução de categorias filosóficas-veremos que não existe algo como a literatura enquanto tal. Proponho ao invés que a literatura é não apenas algo distinto das “belles lettres” ou até daqueles modos da escrita que designamos como poesia, ficção e drama, mas que é sobretudo aquilo a que Derrida prefere chamar “escrita literária”, isto é, aquilo que transe a experiência.”

O primeiro dos grandes “mots d’ordre” a merecer re-leitura é o da desconstrução como uma metodologia da crítica literária. Inúmeras vezes Derrida insistiu em que a desconstrução não é nem uma análise nem uma crítica, e que, ao invés, crítica (no sentido convencional ou transcendental do termo) e análise são motivos sujeitos à desconstrução. A desconstrução, como ele diz na sua “Carta a um amigo japonês”, é “aquilo que tem lugar” (5), independentemente da deliberação, consciência ou organização de um sujeito, ou da modernidade. Não obstante estes recorrentes esclarecimentos, vários foram os departamentos de inglês que nos Estados Unidos se inventaram e re-inventaram enquanto bastiões de uma teoria crítica e literária desconstrutivas. As consequências variam entre o interessante e o patético.

O segundo mito revisitado com grande oportunidade por Kronick é o da divisão da carreira de Derrida em duas fases mais ou menos distintas: a inicial, mais claramente filosófica, e a actual (iniciada por obras como Glas), mais marcadamente “literária”. Em solo americano, foi Rorty o grande impulsionador desta teoria. No já referido volumeDeconstruction and Pragmatism, Rorty refere-se a essa hipotética primeira fase como a uma espécie de propedêutica filosófica (mais académica e pragmática e, portanto, mais “pública”) à fase que se segue, mais “literária”, mais relevante para o domínio do privado. Ora, é justamente esta dicotomia do público/privado, enquanto muleta da distinção filosofia/literatura, aquilo que merece a suspeita de Derrida, e que Kronick pretende desmi(s)tificar neste livro. No texto que constitui a contribuição de Derrida para o volume supra-mencionado, podemos ler:

Eu nunca tentei confundir a literatura e a filosofia ou reduzir a filosofia à literatura. (…) Tento ser atento a esta distinção tanto quanto possível. A literatura interessa-me, supondo que, à minha maneira, a pratico ou a estudo nos outros, precisamente como algo completamente distinto da expressão da vida privada. A literatura é uma instituição pública de invenção recente, com uma história comparativamente curta, governada por toda a espécie de convenções ligadas à evolução da lei, que em princípio, permite tudo dizer. Assim, o que define a literatura como tal, no interior de uma certa história europeia, está intimamente ligado a uma revolução na lei e na política: a autorização de tudo dizer publicamente. Por outras palavras, eu não posso separar a invenção da literatura, a história da literatura, da história da democracia. (80)

O que Kronick nos vem dizer é que, da mesma forma que o conceito de escrita em Derrida não coincide com a transcrição fonética ou notação linear, também a escrita literária não deve ser entendida como “belles lettres” ou mera literariedade do texto. A literatura é o remarcar da institucionalidade em geral, isto é, a um tempo inscrição e transgressão da instituição. Num sentido, a literatura é uma instituição de invenção recente. Noutro, a literatura é o resto ou a reserva que não pode ser subsumida ou totalizada na sua instituição. Por isso a literatura é aquilo que acontece sempre que há o vestígio, a marca: ela re-marca uma relação com o fora que não pode ser re-presentado no presente mas que se promete ao futuro, um futuro por vir. Também por esta razão a desconstrução convida a pensar a literatura no seu sentido convencional, mas sobretudo a repensá-la na sua conjugação com as noções derrideanas da singularidade, responsabilidade, a lei, destruição, invenção e tempo. De notar que o “por vir” de Derrida não é o futuro como modalidade do presente (e por isso Rorty não explica bem o que é a desconstrução ao relegá-la, no texto de Desconstrução e Pragmatismo, para o domínio do utópico), mas antes aquilo que descreve a estrutura da experiência, ou, como diz Kronick, aquilo que transe a experiência. A literatura deve ser pensada como uma condição para a vinda do outro. Neste sentido, não só ela está intimamente ligada à ética, como também ao futuro: literatura, ética e futuro são como que dimensões diferentes de um mesmo termo. Kronick torna claro que, para entender o papel da literatura em Derrida é preciso antes de mais perder de vista a noção convencional que dela temos (e, consequentemente, deixar de avaliar a importância da literatura em Derrida pelo prisma da alegada “dimensão criativa” ou “performance literária” dos seus textos) e começar a entendê-la como essa “estranha instituição” segundo a qual tudo se pode dizer.

Esta formulação em forma de epíteto surge numa longa e “canónica” entrevista que Derrida deu a Derek Atridge em 1992 e que com o título “This Strange Institution Called Literature” abre o volume por este organizado, de nome Acts of Literature. O livro de Joseph Kronick pode ser lido como um longo comentário a esta entrevista, proposta como pórtico de entrada para a leitura da totalidade da obra do filósofo francês, da qual procura mostrar a unidade e profunda coerência. Resulta de um trabalho paciente de escrutínio de 44 de entre as muitas mais publicações de Derrida, e os seus cinco capítulos (incluída a introdução) obedecem a um esquema preciso: levantamento da questão, inscrição pessoal e desenvolvimento. O primeiro capítulo, “Aporetic Conclusion: The Law of the Name”, procura demonstrar como o estatuto da literatura enquanto evento que “afirma a vinda do outro”, evento “que nos inventa” e que “olha pelo futuro” (36) depende do seu poder de dizer tudo, isto é, não na sua capacidade representativa (algo que ela partilha com os restantes discursos), mas na sua exemplaridade abissal da infinita referencialidade e diferimento da marca (37). No segundo capítulo, “Edmond Jabès and the Question of the Jewish Unhappy Consciousness: Reflections on Deconstruction”, Kronick pretende explorar a questão da literatura enquanto “questão de ontologia e gramática” (72), enquanto questão do “ser dividido da literatura”, entre “a época do ser” e uma “escrita ilegível”, isto é, como pertencente a uma “idade outra que a idade do livro”. Para tal, socorre-se da leitura derrideana da obra de Edmond Jabès, e nomeadamente da aproximação que Derrida estabelece entre o Livre des Questions e a Fenomenologia do Espírito. Este é um dos nós górdios deste livro, na medida em que cumpre um dos seus grandes objectivos estratégicos: singularizar a obra de Derrida em relação àquilo a que se chama a “desconstrução na América”, e às leituras “desconstrutivas” da obra de Jabès. Mas também, e isto interessará sem dúvida aos leitores portugueses, em relação às leituras “pós-modernas” da mesma. Deste modo o livro abre com muita pertinência um debate ainda não havido, ou talvez falseado nas suas premissas: o da relação entre a desconstrução e o pós-modernismo. Nos Estados Unidos Edmond Jabès é considerado um autor pós-moderno, e, por via da sua associação indirecta à desconstrução (i.e., pelo facto de Derrida ter escrito dois textos sobre ele), tornou-se vulgar ler toda a “escrita judaica” contemporânea como a um tempo “desconstrutiva” e “pós-moderna”. Os critérios desta consideração permanecem, o mais das vezes, guardados no segredo dos deuses, ainda que o slogan que corre como moeda corrente é o de que a obra de Jabès, por via da sua dimensão fragmentária, efectua uma crítica da representação, o que quer que por isto se entenda. Ora, aquilo que a leitura de Derrida mostra claramente é que a inversão operada no Livre des Questions entre o Deus logocêntrico cristão e o Deus ausente do judaísmo não perturba a determinação mimética e filosófica da literatura: Jabès e o seu texto fragmentário representam a ausência como ideia constitutiva do livro. O Livre des Questions, enquanto representação de uma ideia (a do livro como todo) mantém-se nos limites da representação mimética (88). Daí a aproximação à Fenomenlogia do Espírito. Mas mesmo que a fragmentariedade da obra de Jabès operasse uma suspensão da dimensão representativa da linguagem, ainda isso não faria dela uma “obra desconstrutiva”: procurar suspender a dimensão representativa da linguagem através da “literariedade” da literatura seria ainda obedecer à determinação platónica da mimesis. Por outro lado, acabar com a mimesis é algo que Derrida continuamente rejeita como o impossível. A desconstrução procura deslocar o pensamento tradicional (platónico/heideggeriano) da mimesis, não destruí-lo. E esse deslocamento faz-se -para além do pathos da “ultrapassagem da metafísica”.

Os restantes dois capítulos propõem uma leitura de alguns dos primeiros textos de Derrida, nomeadamente Husserl et l’origine de la geométrie e La Voix et le phenoméne. O terceiro capítulo, “Writing in the Nuclear Age”, explica a ideia de apocalipse e a versão não-teleológica que Derrida oferece desse termo, e procura esclarecer a ideia de escrita como “o nome para a unidade estrutural de idealidade e repetição, em que a última torna possível e marca os limites da primeira.” (134). Trata-se de deslocar a idealidade tal como Husserl e a fenomenologia a definiram, sem no entanto dela abdicar de todo. Este é talvez o capítulo mais denso do livro, com formulações mais crípticas e uma linguagem a meu ver um tanto deselegante. O quarto e último capítulo, “Monstruous Writing: The Gift of Literature”, regressa à entrevista com Derek Atridge e procura problematizar o pensamento derrideano do dom (contrastando-o com o de Heidegger) na sua relação com a questão da literatura. Aquilo que a literatura dá, e que não se pode situar em nenhuma modalidade do presente, é a possibilidade de tudo dizer: algo que vai a par com a invenção da democracia. Este dom é mais antigo do que o Ser, e a literatura é também a crónica desse tempo em que o dom se dá na aporia da sua própria (im)possibilidade.

Joseph Kronick abre com este livro um debate que urge continuar, dos dois lados do Atlântico. Agora que, pelo menos no espaço americano, esmorecem o espírito proselitista e outras paixões menores, talvez o futuro nos traga uma outra paixão: a da leitura.

Duda Machado

Duda Machado (Carlos Eduardo Lima Machado) nasceu a 3 de Maio de 1944 erm Salvador, Bahia. Formou-se em Ciências Sociais, cismou com o cinema, escreveu meia-dúzia de letras de música e perambulou pela cidade do Rio de Janeiro, onde editou o número único da revista Polem (1974) e publicou o livro de poemas Zil (1977). Nesse mesmo ano, voltou para Salvador e, em 1980, mudou-se para São Paulo. Trabalhou na Editora da Universidade de São Paulo e, em 1990, reuniu, no volume Crescente, a sua poesia, acrescentando ao seu primeiro livro o volume inédito Um Outro. Em 1997 editou a sua terceira colectânea poética, Margem de uma onda. Na badana desse livro, Luiz Costa Lima refere-se a Duda Machado como «um dos quatro ou cinco maiores poetas da geração posterior às de Cabral e dos concretos». Actualmente, lecciona Teoria da Literatura na Universidade Federal de Ouro Preto.

Ciberkiosk agradece ao autor a cedência destes dois poemas inéditos.

 


Correnteza

Acontece: possuídos pela imagem
do que perdemos, somos conduzidos
ao que teria então sido possível.
Aí chegados, esta expansão no tempo
de um tempo irrealizado acaba
por nos devolver ao presente
e à indistinção, no que é possível,
daquilo que será perdido.

 

 Antecipação

Da vidraça a chuva ia-se
acalmando sobre a paineira,
a cujo brilho a luz do poste,
entre gotas, se ligava.

E o que quando se diz que este
esboço consumava o reencontro
com a tentativa do poema
há algum tempo interrompida?

Mas o alívio não sabia persistir.
Até então contidos,
a assombração muda das palavras
e o medo de não escrever
sublinhavam cada frase por vir
ou a ser negada.

Nestas imagens, em seu excesso,
outra máscara se escancarava:
o cálculo de magia a conjurar
o não-escrever, antecipando-o.

OS INTELECTUAIS E O ESTADO NOVO

Em Portugal, sob o Estado Novo, falar de “intelectuais” foi quase sempre falar da oposição. Em 1966, em conversa com Franco Nogueira (ministro dos negócios estrangeiros), o presidente do conselho Oliveira Salazar queixava-se de que “teve sempre grande dificuldade em encontrar colaboradores, e que os intelectuais lhe fugiram sempre”. Em 1972, o escritor Eduardo Lourenço confirmava a amargura salazarista: “o intelectual mais típico entre nós tem sido o da oposição”. Com efeito, a gente de letras nunca parou de cultivar a lenda do seu anti-salazarismo. Em 11 de Maio de 1975, discursando perante o I Congresso dos Escritores Portugueses, o primeiro ministro Vasco Gonçalves congratulou-se com o facto de que o “fascismo nunca contou com os intelectuais portugueses”. Ao mesmo tempo, porém, Gonçalves lamentou que, tendo-se os intelectuais habituado a escrever de uma maneira muito “sofisticada para poder passar na censura”, os seus textos “ficavam só ao alcance de outros que eram já, digamos, os vossos companheiros”. Era essa a questão que perturbava o currículo cívico do intelectual. Supondo que os intelectuais portugueses foram anti-salazaristas, quão eficaz foi o seu anti-salazarismo?

1. Ideia de Intelectual. A expressão “intelectuais” designou os escritores, os artistas e em geral os diplomados pelas universidades que, na primeira metade do século XX, procuraram influenciar o governo dos estados fundando-se na fama ou prestígio supostamente atingidos através de actividade literária, artística ou científica. A intervenção pública do romancista Émile Zola e de outros autores durante a Questão Dreyfus em França (1898) é geralmente citada como marcando o “nascimento dos intelectuais” na Europa Ocidental. Mas para além do modelo do clerc francês – geralmente um escritor célebre investido no papel de profeta laico -, existiu ainda outro tipo de intelectual, o da intelligentsiarussa no século XIX: uma massa de diplomados sem saída profissional, efeito perverso da expansão escolar num país pobre. Os estadistas conservadores sempre viram nos intelectuais um elemento perturbador, devido à sua tendência para adoptar causas radicais. De facto, nas décadas de 1920 e 1930, os movimentos fascistas e comunistas souberam explorar os intelectuais na sua propaganda contra a “sociedade burguesa” e o “capitalismo”. Livros, filmes e quadros foram então um instrumentos de luta política. Intelectuais passaram a ser todos os escritores, artistas e cientistas pagos, promovidos e cortejados por governos e partidos políticos como forma de captar ou influenciar a opinião pública.

2. Os Intelectuais em Portugal. O enfraquecimento da igreja e da aristocracia titular e a importância dos debates parlamentares e jornalísticos durante a monarquia constitucional (1834-1910) permitiram que oradores e escritores – como Alexandre Herculano ou José Estêvão – ocupassem os primeiros lugares da meritocracia liberal. Mas foram os autores da chamada Geração de 1870 – tais como J.P. Oliveira Martins, Teófilo Braga ou Guerra Junqueiro – quem estabeleceram o paradigma do intelectual português. Na maior parte dos casos, tratava-se de um escritor, geralmente identificado com a esquerda radical, que escrevia para os jornais criticando o carácter oligárquico e egoísta da política liberal e exaltando a necessidade de mobilizar a nação. No entanto, a maioria dos intelectuais pertenceu sempre – pelas suas origens, educação e meios de vida – às classes respeitáveis, cuja principal sustentação estava no serviço do estado. Assim, quase todos foram “bacharéis” (diplomados em direito) e empregados do estado. Só depois da década de 1890, o número de estudantes nos liceus e escolas superiores aumentou ao ponto de muitos temerem o advento de um “proletariado intelectual” como na Rússia, isto é, de uma classe letrada demasiado numerosa para poder ser absorvida pelos serviços do estado e por isso supostamente vocacionada para a frustração e a rebeldia. Não por acaso, os líderes do Partido Republicano Português foram frequentemente identificados como “intelectuais”. A hegemonia da esquerda entre os intelectuais só se quebrou durante a República Democrática (1910-1926), quando, sob inspiração francesa, apareceu uma direita intelectual, defendendo a monarquia e o catolicismo. O Integralismo Lusitano (1915), cuja principal figura foi o ensaísta António Sardinha (1888-1923), constituíu a mais notória dessas tendências anti-situacionistas, que atraíram sobretudo a juventude universitária. No entanto, a República continuou a dispôr dos seus campeões intelectuais, como os literatos ligados à Renascença Portuguesa (1911) e à revista Seara Nova (1921). Alguns deles, como Leonardo Coimbra, António Sérgio ou Ezequiel de Campos chegaram mesmo a ministros. Nas primeiras décadas do século XX, a vida intelectual continuou a ser solta e informal, centrada em tertúlias de café ou em redacções de jornais e revistas, sem a disciplina que as universidades e as grandes academias impunham em França e na Alemanha. No entanto, já se notava a tendência entre os letrados para procurar empregos nos liceus e universidades, instituições que se expandiram nesta época.

3. A Direcção da Inteligência. Em 1934, o Presidente do Conselho Salazar definiu o Estado Novo como o governo da “inteligência”, um regime em que a direcção do estado era “quase exclusivo do professorado superior” (discurso de 28.1.1934). O Estado Novo realizava assim o modelo de governo idealizado pela oposição monárquica francesa sob a Terceira República (1871-1940), o da “ditadura de professores”. O Secretariado Nacional de Propaganda (1933) reflectiu em Portugal o sonho dos intelectuais de todas as tendências na década de 1930: a criação de uma nova cultura popular, que fosse a base da mobilização das massas dentro do estado. O Estado Novo instaurou um sistema de mecenato às letras e artes, com vários organismos oficiais a conceder bolsas e subsídios e a organizar congressos e exposições. Inicialmente, o salazarismo começou por beneficiar da voga do autoritarismo de direita nos meios universitários. Entre os famosos “Tenentes de Maio”, os mais determinados defensores da Ditadura durante os vários contra-golpes militares de 1927-1931, havia muita gente saída das universidades ou em contacto com os grupos de jovens literatos influenciados pelo Integralismo Lusitano. No entanto, os intelectuais do regime não eram os jovens fascistas, mas os antigos liberais conservadores, levados a aderir ao autoritarismo salazarista por zelo anti-comunista ou por simples oportunismo. Assim, as grandes iniciativas culturais do Estado Novo foram presididas por gente como Júlio Dantas, presidente da Academia das Ciências de Lisboa, líder da embaixada cultural ao Brasil (1941) e delegado português na Comissão de Cooperação Intelectual da Sociedade das Nações (1934), ou Augusto de Castro, director do Diário de Notícias e comissário-geral da Exposição do Mundo Português (1940). Dantas e Castro correspondiam ao perfil dos recrutas da União Nacional na década de 1930, gente de meia idade, respeitável, pouco doutrinária. Em Junho de 1935, quando António Ferro, o responsável pelo SNP, trouxe a Portugal uma “embaixada cultural” de escritores europeus, preferiu escolher velhos conservadores, “independentes” e sobretudo católicos (Gabriela Mistral, François Mauriac, Maurice Maeterlinck, Jacques Maritain). António Ferro negou sempre a existência de critérios sectários na atribuição de subsídios e prémios. Em termos de artes plásticas, o SNP acolheu nas suas exposições a maior parte dos pintores e escultores portugueses. Declinando a opção academista da Rússia Soviética e da Alemanha Nazi, Ferro gabava-se de que o salão anual de Arte Moderna do SNP albergava “exclusivamente a facção mais ousada, mais irreverente, mais inconformista da arte portuguesa”, para escândalo de todos aqueles que temiam a “suposta bolchevização das formas e das cores”. Mas em literatura, a inteligência do regime não rompeu os limites seguros de um quintal monárquico-católico, dito “nacionalista”. Em 1943, Ferro era obrigado a reconhecer que podia citar “meia dúzia de nomes de escritores novos, de orientação discutível mas de inegável talento que, por desdenhosa atitude olímpica ou falsa posição ideológica, se revelaram, se impuseram sem nunca terem concorrido aos nossos prémios ou até a quaisquer outros”. Em 1944, era forçado a desmentir a opinião corrente de que “os nossos autênticos valores se têm mostrado alheados, indiferentes aos prémios do SPN”. Por volta de 1948, os 12 prémios literários – para teatro, novelas, contos, ensaios, história, etc – não apresentavam um cadastro de sucesso. 17 dos 111 prémios não tinham sido atribuídos. O pior registo era o do prémio de novela, que em 5 das 9 ocasiões não encontrara um vencedor. Os outros 92 prémios haviam laureado 76 autores, alguns dos quais ganharam o prémio três vezes, como o romancista Joaquim Paço de Arcos.

Em 1946, a cerimónia de entrega de prémios foi suspensa, no rescaldo da campanha eleitoral de Outubro e Novembro de 1945, ocasião em que o Movimento de Unidade Democrática conseguiu bater o SPN na batalha pela “inteligência”. A 16 de Outubro de 1945, 29 professores da Universidade de Coimbra decidiam apoiar publicamente a oposição. A 20 de Outubro, o MUD publicava uma lista de 100 escritores alinhados pelo programa de democratização. Eram apenas 10 % dos cerca de 1000 autores recenseados no Anuário dos Escritores de 1941. Mas entre eles estavam autores célebres, como Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro, jornalistas famosos, como Norberto Lopes e Artur Portela, e alguns dos mais influentes mestres-pensadores da década de 1930, como António Sérgio e José Régio. Apareciam ainda os professores que iriam dominar o ensino universitário da literatura nas décadas seguintes: Hernâni Cidade, Vitorino Nemésio e Jacinto do Prado Coelho. Ao nível dos mais novos, a lista de apoiantes do MUD lê-se como uma espécie de “Quem vai ser Quem na Literatura Portuguesa”: Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço, Virgílio Ferreira, Fernando Namora, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, etc. Havia mesmo um premiado do SPN, Olavo de Eça Leal. A 10 de Novembro, o Diário de Lisboa publicava entrevistas com dois escritores, Alves Redol e Francisco Costa. Redol, publicamente conhecido como militante comunista, não falou de literatura. Em vez disso, citou muitas estatísticas para provar que o Estado Novo deixara o povo na miséria. Costa, um romancista católico que acabara de ganhar um prémio do SNP (1944), admitia que a maior parte dos escritores portugueses estava contra o regime e culpava o próprio Estado Novo pela total politização da literatura e da arte. Em Dezembro de 1945, perante a maré cheia da oposição, Salazar notou, em carta a Marcello Caetano, que além dos velhos da República, “gente nova” e “alguns intelectuais”, se viam “os antigos bolseiros do Instituto de Alta Cultura”. Porque é que o Estado Novo, apesar dos seus recursos, não conseguiu estabelecer a sua ditadura da inteligência? E porque é que o “intelectual” apareceu cada vez mais identificado com a oposição ao salazarismo?

4. As Oposições Intelectuais.

Em princípio, não era confortável estar contra o regime. O Estado Novo colocara as publicações escritas, os espectáculos teatrais e outros meios de comunicação sob a alçada da administração através, sobretudo, da instituição da censura prévia. Em 1937, o escritor José Marinho, recém-saído da prisão, lamentava-se numa carta a José Régio: “É muito difícil viver em Portugal, ou noutro país nas circunstâncias presentes, sem ter de ceder de alguma maneira, aqui ou ali. Se se vai para os colégios, tem de se fazer uma papeleta declarando que se está integrado etc. No jornalismo, há o contacto directo ou indirecto com a Censura, instáveis hipocrisias e concessões. No comércio, aparece o sindicato.” À primeira vista, tudo isto devia ter inibido opções anti-salazaristas por quem ambicionava uma carreira nas letras e artes. No entanto, qualquer lista dos escritores mais conhecidos de 1926 a 1974 pode soar como uma chamada de nomes da oposição ao salazarismo: à esquerda, António Sérgio, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Régio, Jorge de Sena; à direita, Tomás de Figueiredo, Afonso Lopes Vieira, Hipólito Raposo, etc. Isto não significa apenas que os mais destacados escritores se juntaram à oposição ao regime, mas que essa oposição, apesar da sua impotência política, conseguiu impôr os seus critérios de distinção intelectual. Não por acaso, a História da Literatura Portuguesa mais divulgada nas décadas de 1960 e 1970 foi escrita por dois militantes do Partido Comunista Português, António José Saraiva e Óscar Lopes (1955, com seis edições até 1969). Em 1960, Jorge de Sena descrevia a literatura portuguesa como “uma frente popular” que “agrupa quase todo o mundo na exploração comercial do anti-salazarismo”. A “aparência de oposição” era de rigor entre a gente de letras. O “intelectual” era, quase fatalmente, um escritor da oposição, com ficha na polícia e problemas com a censura. Exercia uma profissão liberal ou trabalhava em colégios particulares, jornais e editoras. No entanto, também os havia empregados nos liceus, universidades e outros serviços do estado, como Vieira de Almeida, José Régio, Jorge de Sena (até à sua saída para o Brasil), David Mourão-Ferreira, etc. Durante as campanhas eleitorais, aparecia nas listas e congressos da oposição. Nos intervalos, assinava protestos e petições por isto e aquilo.

A oposição intelectual era possível, em primeiro lugar, porque o Estado Novo nunca chegou à arregimentação cultural cerrada da União Soviética da década de 1930. Em 30 de Outubro de 1935, o escritor Fernando Pessoa anunciava a um amigo que não publicaria mais nada em Portugal porque depreendia de um discurso de Salazar, no dia 21 de Fevereiro, que a Censura ia deixar a “regra restrictiva da Censura, não se pode dizer isto ou aquilo, pela regra soviética do Poder, tem que se dizer aquilo ou isto”. Mas ao contrário do que temia Pessoa, os escritores portugueses nunca se viram obrigados a compôr poemas ao equilíbrio orçamental ou quadros alegóricos do corporativismo. Nunca os escritores, músicos e artistas estiveram obrigados a sindicalizar-se, nem foram regularmente sujeitos a exames de conformismo ideológico como na União Soviética. “A acção espiritual transformada em serviço público, tal como aconteceu na Rússia, é a morte lenta mas inevitável da Arte e da Literatura”, explicou António Ferro em 1937. Durante grande parte da década de 1930, o regime conviveu com uma imprensa em que as tendências colaboracionista e resistente se equilibravam. Em 1933, sete anos depois de instaurada a ditadura militar, fontes oficiais calculavam que de 251 jornais de província, apenas 40 % eram favoráveis ao regime, 25 % eram neutrais e 32 % eram claramente hostis. Nessa época, continuava a haver jornais que se afirmavam “liberais”, “republicanos”, “democratas” e “socialistas”. A impossibilidade de criticar o regime directamente era reciprocada por uma espécie de contra-censura: por exemplo, o Diário Liberal, publicado em Lisboa entre 1932 e 1934, nunca mencionou o nome de Salazar nas suas colunas. Depois de meados da década de 1930, as publicações opostas ao regime conheceram uma época má e o seu número diminuíu. Provavelmente, este declínio reflectiu o aumento da pressão oficial durante a guerra civil de Espanha (1936-1939). Por exemplo, os jornais hostis viram-se atingidos pela privação de anúncios oficiais, que eram uma das bases da imprensa regional. Mas a perda de ânimo da oposição, numa época de sucessivas derrotas da esquerda, também deve ter contribuído para o retraímento da imprensa anti-salazarista. Em Outubro de 1945, de 525 periódicos, apenas 4 mantinham uma linha editorial abertamente hostil ao regime e 5 potencialmente hostil. Mas não havia mais apoio directo do que em 1932. Apenas 66 periódicos (12,5 %) alinhavam pelo Estado Novo sistematicamente. 187 defendiam-no ocasionalmente. No entanto, a maioria – 263 publicações (50 %) – mantinha-se neutral. De facto, na grande imprensa de Lisboa e Porto predominaram sempre os “independentes”, apoiando o governo casuisticamente. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o governo não pôde impedir a invasão do país pelas máquinas de propaganda dos países beligerantes e acabou por perder o controle sobre a circulação de informação. Segundo os serviços secretos britânicos, a emissão em português da BBC tornara-se, por volta de 1944, a principal fonte de notícias para as classes médias. A vitória dos Aliados em 1945 e as decorrentes hesitações do governo provocaram um súbito renascimento da oposição. Assim, entre Outubro e Dezembro de 1945, o número de periódicos abertamente hostis ao regime saltou de 9 para 50 – voltando-se a uma situação quase semelhante à do princípio da década de 1930 (números em A Política de Informação no Regime Fascista Lisboa: Comissão do Livro Negro, 1980).

Os salazaristas sempre argumentaram com a liberdade de que gozavam os intelectuais da oposição, livres de frequentar a má-língua dos cafés do Chiado, de publicar livros e artigos e de se desentranharem em abaixo-assinados. Estar na oposição não era estar desamparado. A partir sobretudo da década de 1940, um circuito cultural paralelo permitiu a escritores e artistas fazer carreira sem dependerem dos organismos oficiais. Entre 1946 e 1956, as Exposições Gerais de Artes Plásticas rivalizaram com o oficial certame do Secretariado Nacional da Informação (novo título do SNP). Em 1947, os escritores do MUD fundaram a secção portuguesa do PEN Club. Em 1956, aparecia a Sociedade Portuguesa de Escritores, sucessivamente presidida pelos oposicionistas Aquilino Ribeiro e Jaime Cortesão. A SPE reuniu 600 sócios e lançou os seus próprios prémios literários, subsidiados pela Fundação Calouste Gulbenkian. Criada em 1956 e dirigida pelo advogado José Azeredo Perdigão, subscritor das listas do MUD em 1945, a Fundação Gulbenkian comportou-se como uma espécie de ministério da cultura paralelo, proporcionando a artistas plásticos, músicos e académicos uma alternativa aos comprometedores subsídios oficiais. Na década de 1960, bolsas de instituições estrangeiras, como as do americano William Fullbright, também compensaram a discriminação interna. Assim, ser um “intelectual” da oposição não era, para um escritor ou pintor, um acto de suicídio público. Pelo contrário, podia ser uma forma de garantir a publicação em determinadas editoras ou de ser recomendado por certos jornais.

A oposição dos intelectuais expressava, em primeiro lugar, a tradicional heterogeneidade de opiniões entre as classes educadas. O cepticismo em relação à autoridade era, para a élite instruída, um sinal do seu estatuto social. Os governantes podiam assustar a simples burguesia com o fantasma da revolução e satisfazer o povo com caridade. Mas a gente instruída e informada não se deixava engodar. Estar contra ou mais discretamente (sobretudo quando eram empregados do estado) desconfiar do que lhe diziam de cima, eram formas de afirmarem o seu lugar na hierarquia social. Já tinha sido assim durante a monarquia constitucional e durante a república. As classes instruídas em Portugal eram classes politizadas, onde as simpatias ideológicas e os partidarismos passavam de pai para filho. Havia famílias republicanas, liberais, católicas, monárquicas. O conformismo ideológico em Portugal só teria sido possível através da destruição destas classes instruídas, num extermínio à maneira estalinista – algo que o Estado Novo nunca, obviamente, considerou. Por outro lado, a instrução estava fundada em referências que, sobretudo no caso da literatura, tinham um sentido político mais ou menos óbvio. Os grandes escritores do século XIX, que continuavam a ser estudados e ensinados nos liceus, tinham sido liberais ou radicais. Estátuas e nomes de rua lembravam, para quem tinha instrução, o liberalismo e a república. Durante o Estado Novo, o número de pessoas diplomadas por liceus e universidades subiu. A frequência dos liceus, por exemplo, sextuplicou entre 1930 e 1960, crescendo de 18,500 para 112,000 alunos. No entanto, a explosão escolar até à década de 1960 não foi tão dramática que afectasse o valor das credenciais académicas. Num país analfabeto, a instrução garantia uma certa preeminência social e os diplomados tendiam a comportar-se como uma ordem nobiliárquica. A maior parte usava títulos, como o de Doutor, decoração académica que se vulgarizou entre políticos e literatos durante a República, precisamente quando acabou o uso oficial de títulos de nobreza. Era gente que se sentia importante e relutante em adoptar a atitude conformada do “povo”. O censo de 1940, classificava 59.897 pessoas nas “profissões de carácter predominantemente intelectual”. Representavam 1 % da população activa. 80 % eram homens. O estado empregava 37 %. Em 1950, esta categoria incluía, por ordem de importância, gestores e chefes de serviços de empresas privadas (5.665) e da administração pública (4.056), médicos (5.697), oficiais do exército (4.032), padres católicos (3.992), engenheiros (3.891), professores do ensino secundário (2.467) e advogados (1.582). A literatura e as artes faziam parte das actividades e consumos que definiam esta élite instruída. Em 1950, segundo o recenseamento da população, havia 260 escritores, 255 “pintores de arte”, 324 escultores e 72 realizadores e técnicos cinematográficos. No entanto, o Anuário dos Escritores de 1941 registava mais de 1.000 nomes. A importância das letras e artes mede-se melhor pelo Quem é Alguém. Dicionário Biográfico das Personalidades em Destaque do Nosso Tempo, publicado pela Portugália Editora em 1947 (Lisboa). Uma sondagem pelos 260 nomes da letra A revela que 36 indivíduos eram identificados como “escritores” (14 %). Mas além desses, mais 106 notabilidades tinham obra publicada. Assim, 55 % das “personalidades em destaque” em Portugal escreviam e publicavam, ocasional ou regularmente, trabalhos de erudição ou peças literárias. A maior parte eram médicos, professores, funcionários públicos, advogados, padres e militares. Muitos colaboravam regularmente para jornais de província e revistas de especialidade. É curioso que sejam poucos os lavradores, empresários ou aristocratas que, enquanto tais, tivessem entrado no Quem É Alguém. Em Portugal, eram as profissões liberais e a actividade literária que davam destaque social. Durante o Estado Novo, a repressão de outras formas de intervenção investiu a actividade literária de uma certa importância política. Determinados consumos culturais eram, para muita gente, a única manifestação de oposição. A literatura tornou-se o instrumento para um debate político que não tinha outro meio de se revelar. Só assim se percebe que o futuro secretário-geral do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal, se tivesse estreado publicamente em discussões sobre estética com José Régio no fim da década de 1930. O Movimento Comunista Internacional sempre viu nos escritores a “artilharia de longo alcance, que abre caminho à infantaria”, como lhes chamou Nikita Krutchev. A mais importante moda literária associada com o comunismo era o chamado “Neo-Realismo”, a adaptação portuguesa da literatura militante dos comunistas americanos e brasileiros. De facto, o neo-realismo foi mais do que isso. Representou a entrada na literatura de uma pequena burguesia provinciana, que vinha dos meios autodidactas das associações de cultura e recreio, como se vê pelo “grupo neo-realista de Vila Franca de Xira”, que produziu o romancista Alves Redol e o dirigente comunista António Dias Lourenço. Representou ainda a radicalização dos filhos dos notáveis republicanos a estudar nos liceus e escolas superiores e activos no circuito de clubes e jornais académicos. Queimadas as “gerações operárias” e suspenso o Avante (1939), o Partido Comunista ressurgiu baseado nos círculos culturais formados por revistas como O Sol Nascente (Porto, 1937-1940) e o Diabo(Lisboa, 1934-1940), cujos colaboradores prolongavam a sua acção por jornais de província e clubes desportivos e recreativos. A Biblioteca Cosmos (1941), orientada por Bento de Jesus Caraça, foi outra iniciativa dos meios comunistas. O sentido deste investimento cultural percebe-se melhor quando se nota que a leitura de determinados livros (Jorge Amado, Alves Redol) constituía a forma corrente de recrutamento comunista. Depois de 1945, o PCP chegou a dispôr de um “sector intelectual” organizado em Lisboa, Coimbra e Porto, sobretudo com estudantes e gente das profissões liberais. Estes eram os agentes do partido nas frentes da oposição, como o MUNAF e o MUD. No vocabulário comunista, “intelectual” tinha um sentido ambíguo: era um eufemismo para os militantes e simpatizantes de origem “burguesa”, e por isso mesmo era também uma forma de insulto. Inevitavelmente, os derrotados nas lutas internas do partido foram sempre acusados de serem “intelectuais” e “pequeno burgueses”.

Os contemporâneos nunca esqueceram o papel da literatura nas décadas de 1940 e 1950. O número de livros publicados por ano em Portugal subiu de 1000 em 1930 para 3000 em 1940. Em 1950, caíu para 2000, mas em 1960 ascendera já a 6500. O número de editoras cresceu de 231 em 1946 para 1290 em 1974. Em 1941, a edição de luxo de A Volta ao Mundo de Ferreira de Castro vendeu 25.000 exemplares. Do seu romance A Selva foram consumidos 2.000 exemplares por ano em média entre 1930 e 1960. Todos os jornais tinham secções literárias, as livrarias organizavam sessões de autógrafos e havia tertúlias literárias em cafés. A visibilidade política dos escritores era grande. O primeiro congresso da oposição republicana em Aveiro, em 1957, foi convocado e dirigido pelo médico e crítico literário Mário Sacramento. Em 1958, foram António Sérgio, Jaime Cortesão e Vieira de Almeida quem deram créditos de oposição a Humberto Delgado. Houve casos célebres. Por exemplo, o processo judicial ao “grande escritor” [segundo a própria Polícia Judiciária] Aquilino Ribeiro, em 1959. Aquilino era acusado de injúrias à magistratura “a coberto da ficção literária” no romance Quando os Lobos Uivam (que esgotou quase 10.000 exemplares num ano). O caso provocou a solidariedade dos intelectuais franceses, encabeçados por François Mauriac, no Le Monde. Em Portugal, 300 literatos apoiaram a candidatura de Aquilino ao Prémio Nobel, o que fez o Ministério Público insinuar que o acusado queria “disfarçar-se de Pasternak”, referência ao dissidente russo que ganhara o Prémio Nobel da Literatura em 1958 (ver A. Caldeira e D. Andriga, Em Defesa de Aquilino Ribeiro, Lisboa: 1994).

Mas a oposição intelectual não era um fenómeno de esquerda. Salazar, que recebeu os maiores elogios da direita reaccionária francesa, nunca pôde contar com a devoção dos ideólogos do reaccionarismo doméstico. Os velhos Integralistas – como Hipólito Raposo ou Alberto Monsaraz – depressa passaram à oposição. Os Integralistas mais novos, como Francisco Rolão Preto, desafiaram o salazarismo e preferiram emular os movimentos totalitários da Itália e Alemanha. O Nacional Sindicalismo (1932-1934) revelou como a deriva fascista podia incomodar o regime. O movimento foi fundado fundado por estudantes das Faculdades de Direito e de Letras da Universidade de Lisboa e tinha inquietantes ramificações entre os oficiais do exército e o professorado da Universidade de Coimbra. Entre os Nacional-Sindicalistas estavam os escritores António Pedro e Luís Forjaz Trigueiros, o professor universitário Luís Cabral de Moncada e os jornalistas Dutra Faria, Barradas de Oliveira e Manuel Múrias. Depois da proibição do Nacional Sindicalismo, alguns dos seus seguidores, como António Pedro, passaram à oposição anti-salazarista. Outros, como Dutra Faria, Barradas de Oliveira e Múrias, entraram nos órgãos de propaganda do regime, geralmente em posições subalternas. Permaneceram sempre mais conformados do que entusiasmados. De 1942 a 1944, Marcello Caetano, ex-Integralista e comissário nacional da Mocidade Portuguesa, seringou Salazar com a alienação da “juventude universitária”, por falta de fervor ideológico no regime. Mas a necessidade de equilibrar facções impediu qualquer orientação doutrinária de acordo com as modas totalitárias europeias da década de 1930. Os católicos nunca pactuaram com o “totalitarismo” fascista, a que opuseram o o respeito pela dignidade da “pessoa humana”. Continuando a velha política eclesiástica de reconciliação iniciada durante a República Democrática, o Cardeal Cerejeira mostrou sempre mais apetência por cativar a esquerda do que por satisfazer a direita, que sempre viu nele um republicano inimigo das boas famílias monárquicas. Na década de 1950, os “católicos progressistas” encarnaram as dúvidas da igreja em relação à intransigência salazarista. Assim, enquanto para a extrema-esquerda, o regime era um bloco homogéneo e sólido de fascistas, jesuítas e monárquicos, servidos pela polícia e pela censura, a direita radical acusava o regime de, pelo contrário, favorecer a esquerda. Em 1948, numa conferência em Guimarães, Alfredo Pimenta pôde dizer a jovens direitistas: “A imprensa é toda democrática? É. As Emissoras da Rádio são todas democráticas, incluindo a Emissora Nacional? São. Nós não temos Imprensa diária nem temos Emissoras. Somos muito poucos”. Pimenta tinha empregos oficiais, mas estivera preso e era vítima permanente da censura. O regime parecia-lhe um equívoco, dominado por Jorge Botelho Moniz e Marcello Caetano, esses “arautos da democracia”. A habitual obsessão da governação salazarista foi, mais do que corresponder aos entusiasmos de alguns fanáticos, a de atingir a respeitabilidade a partir do centro. A direita radical sempre se escandalizou com o eclecticismo governamental, o corporativismo incompleto, a falta de mobilização nacionalista. Queriam um regime anti-burguês e anti-capitalista. Sofriam pelo negligência com que o regime tratava a direita intelectual, enquando as esquerdas protegiam os seus escritores e artistas (ver por exemplo, A Voz, 13.2.1960). De facto, nunca nenhum escritor da direita alcançou a fama das luminárias oposicionistas. O ressentimento da extrema direita levou uma parte dela a comungar com as esquerdas no anti-salazarismo. Em 1960, durante o seu processo, Aquilino Ribeiro pôde apresentar os Integralistas Luís de Almeida Braga e Rolão Preto como testemunhas abonatórias.

5. Épocas.

No princípio da década de 1930, os debates intelectuais foram dinamizados pelo advento das modas totalitárias inspiradas pela Rússia Soviética e pela Alemanha e Itália fascistas. Comunistas e fascistas disputaram a atenção do meio estudantil e tentaram penetrar o meio operário (os comunistas no sul e os fascistas no noroeste). Fundamentalmente, fascistas e comunistas representavam o mesmo tipo de gente: estudantes, gente das profissões liberais e alguns operários sindicalizados – a mesma fauna que já formara o movimento republicano de antes de 1910. As revistas literárias desempenharam um papel importante nesta mobilização: para os fascistas, revistas como Fradique (Lisboa, 1934-1935), Revelação (1935), e, para os comunistas, as já citadas DiaboSol Nascente ou a Vértice (Coimbra, 1942). Identificando-se com modelos estrangeiros, tanto fascistas como comunistas desafiaram os políticos e literatos estabelecidos.

Assim, os Nacional Sindicalistas acabaram por rejeitar o nacionalismo saudosista que era a base da cultura da direita: “Sempre os Gamas, os Albuquerques, os Pachecos … Basta!” (ver o discurso de Rolão Preto em 1935 no banquete dos “intelectuais nacionalistas”). Quanto aos comunistas, o seu alvo principal foi sempre a intelectualidade da esquerda republicana, representada por revistas como a Seara Nova ou a Presença. De facto, as polémicas intelectuais da década de 1930 foram interiores aos dois blocos da direita e da esquerda. Em 1948, por exemplo, Alfredo Pimenta podia avisar os jovens direitistas que o verdadeiro inimigo não era o comunismo. Os comunistas eram até gente digna, que lutava pelas suas ideias. O inimigo mais hediondo eram os situacionistas como Marcello Caetano, que queriam pactuar com a democracia. A acção dos extremistas de ambos os lados, apesar da sua pouca importância numérica, era poderosa. Os comunistas insistiam que a única maneira de garantir não ser salazarista era ser comunista. Os fascistas clamavam que a única maneira de não voltar a 1926 era ser fascista. “Durante anos e anos”, confessou Eduardo Lourenço em 1972, “os intelectuais portugueses [da oposição] viveram num pânico ideológico, viveram no medo de passarem, pelas suas atitudes, pelos seus escritos, pelas suas ideias, por aliados objectivos da ideologia oficial”. Este pavor oposicionista assegurou a influência comunista, baseada numa espécie de chantagem moral: “na medida em que ninguém queria aceitar esse papel, uma ideologia mesmo minoritária mas coerente, bem organizada, do ponto de vista da sua expressão concreta, sob o plano da cultura, podia facilmente estabelecer o seu domínio”. O clamor dos intelectuais fascistas e comunistas facilitou a vida a Salazar, na medida em que tornou difícil ao centro político unir-se e produzir uma alternativa ao regime.

Nos meados da década de 1950, porém, o “fim da ideologia”, celebremente anunciado pelo sociólogo americano Daniel Bell (The End of Ideology. On the Exhaustion of Political Ideas in the Fifties, 1960), pareceu prenunciar o advento dos centristas. A derrota da Alemanha em 1945 desmoralizou os fascistas e, em geral, toda a direita reaccionária. A desestalinização na União Soviética perturbou os comunistas. Em Portugal, durante o período de repressão policial e isolamento político que se seguiu às eleições presidenciais de 1949, o Partido Comunista perdeu muita da sua influência nos meios literários. Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, João José Cochofel, Fernando Lopes Graça desertaram. Alguns destes ex-comunistas aproximaram-se de António Sérgio, de Jaime Cortesão ou de Mário de Azevedo Gomes, revitalizando a velha esquerda republicana. O neo-realismo acabou triturado pelo impasse político e pelas exigências do meio literário, que recusou a falta de estética e de estilo. Revistas como a Távola Redonda(1950-1954) impuseram uma literatura “literária”, sem sectarismos e com grande rigor formal. Novas modas como o Surrealismo e depois o Existencialismo justificaram a evasão de muitos escritores e pintores à órbita comunista. Entretando, o tecnocrata substituía o literato tradicional como tipo do homem sábio. Os engenheiros já então eram a maior produção das institutições de ensino superior portuguesas, ocupando o lugar que o bacharel em leis tivera no século XIX. Descontentes com o suposto “imobilismo” do regime, mas sem simpatias pela “revolução” comunista, convenceram-se de que a via para o futuro estava na mudança do regime por dentro, pacificamente, através da “modernização”. A industrialização da década de 1950 parecia pressagiar essa mudança. Os tecnocratas queriam acelerá-la, mas ao mesmo tempo controlá-la, de modo a minimizar os custos sociais e a maximizar os benefícios. Eram profissionas e competentes, mas pouco políticos. Uma parte passara pela Juventude Universitária Católica, a organização dominante nas universidades durante a década de 1950. Em 1970, organizaram a Sedes, Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (António Alçada Baptista, Ruy Belo, João Salgueiro, Adérito Sedas Nunes, Alfredo de Sousa, etc). Marcello Caetano foi então a sua esperança. Na década de 1950, enquanto ministro da presidência (1955-1958), Caetano já se tornara um pólo de convivência entre o regime e a oposição. Caetano era genro do escritor oposicionista João de Barros. No fim da década de 1940, discordara da linha dura adoptada pelo governo, nomeadamente do saneamento de 24 professores universitários em 1947. Em 1956, num discurso por ocasião da tomada de posse do novo dirigente do SNI, Caetano citou António Sérgio, chamando-lhe um “grande homem de letras”. Caetano tentou ainda atraír artistas e letrados da oposição por ocasião das comemorações do Trigésimo Aniversário da Revolução Nacional. Academias e universidades, onde bastava a circunspecção política para satisfazer o governo, aproveitaram este novo espírito de abertura para estabelecerem pontes com a oposição. Assim, a Academia das Ciências de Lisboa dava o seu prémio literário de 1951 a Alves Redol e em 1955 elegia Fernando Namora para sócio. Nos meados da década, o próprio Partido Comunista tentou descartar algum do seu sectarismo.

Desde o fins da década de 1950, o PCP voltou às Universidades e a Vértice recrutou uma nova geração de colaboradores. A mais acesa guerra cultural volta a travar-se dentro do campo da oposição. Directa ou indirectamente, o Partido Comunista e outros grupos esquerdistas controlavam um apreciável número de editoras e de suplementos literários e a sua censura e dirigismo culturais eram tão ou mais ressentidos do que a censura oficial. No meio intelectual, ser um “agente do imperialismo” tornou-se mais perigoso do que ser “comunista”. Para se compreender a importância das guerras intelectuais, é preciso notar que, excepto nos meios industriais da margem sul do Tejo e nos campos alentejanos, o Partido Comunista não era um partido operário, mas uma organização das classes educadas, baseada na circulação de livros, revistas e panfletos. A estratégia comunista era então romper o aparente convívio entre escritores e artistas de direita e esquerda que se estabelecera durante a crise das ideologias na década de 1950. Em 1965, a atribuição do prémio de romance da SPE a um militante do Movimento Popular para a Libertação de Angola, Luandino Vieira, deve ser interpretada no âmbito dessa estratégia. Alexandre Pinheiro Torres, um dos membros do júri, confessou que o objectivo do prémio era “acabar com um certo convívio risonho entre alguns intelectuais da direita e da esquerda” (“Todos Mentem e Fingem”, em Ler, Outono 1995, nº 35). De facto, a SPE foi dissolvida e a sua sede assaltada por um esquadrão da extrema direita. Nos Estados Unidos da América, Jorge de Sena desconfiou do que se passava: “a que ponto a Sociedade não foi, e de dentro, vítima das clássicas manobras de provocação? Em que medida não estavam interessados em que ela fosse fechada, talvez porque não iriam ganhar umas próximas eleições […]?” [carta a Virgílio Ferreira, 4 de Julho de 1965]. No entanto, a “ditadura cultural” do Partido Comunista nunca conseguiu melhores resultados do que a de António Ferro. A primeira razão estava em que era impossível controlar um meio em expansão. Na década de 1960, o número de estudantes universitários subiu de 23.900 para 49.500. Tal como em todas as universidades europeias e americanas, criou-se em Portugal uma cultura de contestação, à volta sobretudo das guerras no Terceiro Mundo.

A guerra em África também trouxe algum sangue novo ao regime. Escritores anteriormente alinhados com a oposição, como os mentores da chamada “Filosofia Portuguesa” (Álvaro Ribeiro, José Marinho), decidiram alinhar com o governo em nome de uma identidade nacional definida nos termos postos a correr pela Renascença Portuguesa (saudosismo, etc.). A revista 57. Movimento de Cultura Portuguesa (Lisboa, 1957-1962), dirigida por António Quadros, expressou essa adesão, que teve um equivalente mais político na entrada de gente como Alberto Franco Nogueira ou Adriano Moreira no governo. A vitalidade intelectual da direita pode ser medida em revistas como Tempo Presente(Lisboa, 1959-1961). Mas a política ultramarina não chegou para disciplinar os apoiantes do regime. Na década de 1960, o ministro dos estrangeiros, Franco Nogueira, queixava-se sobretudo do Diário da Manhã, “suposto ser o jornal do governo” mas de facto a verdadeira oposição, o que contrastava com a compreensão do “reviralho” tradicional. Assim, a extrema direita manteve-se como uma fonte de oposição ao governo do Estado Novo. Entretanto, a política intelectual do regime consistia apenas em restabelecer a promiscuidade da década de 1950. Em Abril de 1968, Salazar aprovou um plano de Franco Nogueira para que o regime apoiasse Ferreira de Castro e Jorge Amado ao Prémio Nobel da Literatura, “e se este fosse concedido, o triunfo não pertenceria somente às esquerdas”. Com Marcello Caetano, a política de recuperação acentuou-se. O SNI esforçou-se por impôr prémios aos escritores da oposição. Gente da oposição entrou nos meios de comunicação e nas universidades, de tal modo que a extrema esquerda pôde instaurar um verdadeiro reinado em determinadas redacções de jornais e escolas superiores. Em 1972-73, o processo contra as “Três Marias” – as escritoras Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, “três simpáticas jovens de boas famílias” (Jorge de Sena), autoras de Novas Cartas Portuguesas – embaraçou de tal modo o governo que o Ministério Público chegou a pedir a absolvição das acusadas.

6. Política e Níveis de Cultura.

A situação dos intelectuais foi determinada por dois factores contraditórios: por um lado, o crescimento das classes instruídas; por outro lado, a emergência de uma cultura de massas, ligada aos meios de comunicação audio-visuais. Na década de 1960, Portugal ainda era o estado com a menor taxa de escolarização na Europa. No entanto, no caso do ensino secundário, o país acompanhara a explosão escolar detectada no mundo pela UNESCO, estando o seu ritmo de crescimento acima da média. De 1960 para 1974, o número de alunos dos liceus subiu de 112.000 para 238.000. O número de indivíduos que frequentara ou frequentava cursos superiores era de 49.000 em 1960 e de 125.130 em 1970. O consumo expandiu-se. O número de automóveis privados quintuplicou entre 1960 e 1974, de 158.000 para 854.000 unidades. Na primeira metade da década de 1970, saíram três colecções de livros de bolso: Europa-América, Livros RTP (da Editorial Verbo) e Unibolso (de vários editores reunidos). Amplamente divulgadas na televisão, estas colecções devem ter publicado cerca de 300 títulos em conjunto e dão uma ideia da dominância da literatura de oposição. Até a colecção Livros RTP, publicada por uma editorial identificada com o regime, incluíu autores como Fernando Namora. A colecção da Europa-América abriu com o romance Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes, um militante comunista que morrera na clandestinidade. Em 1974, o livro tinha sido reeditado cinco vezes. Mas o romance realista da década de 1940 já tinha sido substituído pelo ensaio historiográfico como a forma cultural favorecida pela intelectualidade de esquerda. Durante a chamada “Primavera Marcelista” (1969-1971), os historiadores de esquerda foram especialmente felizes. A Inquisição e Cristãos Novos de António José Saraiva vendeu 20.000 exemplares no ano de 1969. Para as novas classes médias, livros como o de Saraiva eram quase como que credenciais de inteligência e cultura, a prova de que seu consumidor tinha saído do mundo dos pobres e provincianos, supostamente limitados às “ideias feitas” da escola oficial. É essa distinção que se revela nas sondagens do Instituto Português de Opinião Pública e Estudos de Mercado em 1973 e 1976. O mais óbvio sinal de desafogo económico e instrução era preferir a imprensa estrangeira e desprezar a televisão nacional. A fixação em opiniões supostamente salazaristas (o valor da autoridade, a importância das colónias) crescia conforme se descia na escala da instrução. Era como se o Estado Novo só pudesse contar com o povo. E era isso mesmo que pensavam os ministros. Em Setembro de 1966, Franco Nogueira, que aliás tinha sido um literato com passado oposicionista, anotava no seu diário: “A élite, o chamado escol, os intelectuais, os sujeitos que sabem coisas e têm teorias, mas que ignoram o que é Portugal e não o sentem, ainda hão-de levar este país à ruína, deitando tudo a perder, se o povo não fizer ouvir a sua voz”. Assim, ser culto era ser da oposição, saber ler “entre as linhas” e manter uma arrogância iconoclástica perante as verdades oficiais. A extrema direita intelectual, pelo seu lado, vivia uma ilusão semelhante. O monarquismo, a crítica integrista ao catolicismo “progressista” e o fascínio pelo ocultismo e seus subprodutos nacionais (Quinto Império, Sebastianismo, Saudosismo) tornaram-se a marca de água dos intelectuais da direita, como se pode ver em revistas como Resistência (Lisboa, 1967). Nos piores casos, serviam para literatos de boas famílias se destacarem da “pequena burguesia letrada”.

Em 1972, numa entrevista à revista Vida Mundial sobre os intelectuais (25 de Agosto de 1972), Jorge de Sena insinuava que “a educação ou a cultura ou a conquista de um lugar de intelectual em Portugal têm correspondido automaticamente a uma separação em relação ao povo em geral”. Era este o grande drama da oposição intelectual. Os escritores queixavam-se de que não podiam viver da pena, pelo que culpavam o “obscurantismo” e o “atraso” em que o governo mantinha o país ou, em alternativa, a tacanhez tecnocrática da administração. Lamentavam que o cinema (quase todo americano) e a rádio e a televisão domésticos desviassem público da leitura. O povo, quando aprendia, fazia-o nas escolas do Estado Novo e consumia os produtos da cultura audio-visual, sobre os quais o governo mantinha um controle mais apertado do que sobre os jornais e revistas literárias. O número de receptores de rádio quadruplicou na década de 1950 (848.008 em 1960) e duplicou na de 1960 (1.405.672 em 1970), enquanto o número de aparelhos de televisão decuplicava na década de 1960 (de 46.372 para 473.363 em 1971). Em contrapartida, o número de revistas literárias criadas na década de 1960 (30) equivalia a metade das fundadas na década anterior (72) e estava muito longe dos números de 1900-1930, quando se registaram mais de 100 revistas fundadas por década. Começava o declínio de uma certa forma de vida intelectual. Nenhum escritor podia aspirar à fama das “vedetas da rádio e televisão”. Assim, ser culto passou a consistir em odiar o Fado, Futebol, Fátima, isto é, tudo aquilo que era objecto da cultura de massas. Escritores, como David Mourão-Ferreira, que se dispuseram a escrever para a cantora de fados Amália Rodrigues, foram severamente censurados por comprometer a “cultura”. Quando Amália se atreveu a cantar Camões, os intelectuais “anti-fascistas” vieram para os jornais protestar (ver os depoimentos em Diário Popular, 23.10.1965). Entretanto, os meios estudantis produziram uma alternativa, as “canções de intervenção”, uma espécie de neo-realismo cantado. A intelectualidade tradicional, fundamentalmente literária, tornou-se uma referência para as novas classes médias, mas nunca se reconciliou com as massas. Os intelectuais sempre se tinham batido por uma cultura que unisse todos os portugueses. De facto, não tinham sido mais do que a má consciência das classes instruídas

NOS TRINTA ANOS DA MORTE DE RUY BELO

1. POST-SCRIPTUM

A morte de Ruy Belo é uma das efemérides que assinalamos nesta Primavera de 1998. E, como marca de um discurso público das efemérides, poderíamos ter a sedução do recurso a enunciados do tipo: (i) celebramos uma morte que aconteceu no Verão (a 8 de Agosto), na Primavera…porque até como dizia o poeta, a autêntica estação é «uma estação na outra» (cf. o poema «A autêntica estação», I: 177); (ii) ou então, poderíamos dizer que ninguém melhor do que Ruy Belo para uma celebração fúnebre, um poeta que tanto desejou a morte (com tanta veemência como a vida – realidades comutáveis na sua obra); (iii) ou, ainda, poderíamos afirmar que, apesar de falecido, Ruy Belo é – cada vez mais – um dos poetas bem vivos da recente poesia portuguesa, como ele dissera de outro poeta português (o outro, por antonomásia; cf. I: 175). A possibilidade deste tipo de tentações exibe, do meu ponto de vista, o quanto a poesia (um supor: a de Ruy Belo) é ocasião para a citação. É um autor citável. No sentido, até, que o próprio poeta entendeu a citabilidade – passe o neologismo – da poesia de um poeta como Pessoa, de cuja poesia e citação afirma estarem já «integrada[ s] porventura no circuito publicitário da sociedade de consumo e nos interesses oficiais da comunidade» (III: 270). O risco do embalo neste jogo do classicismo ocasional (cf. DIOGO, 1997: 9), impõe, pelo contrário, o exorcismo deste tipo de trabalhos de luto comemorativos – e este falso começo pelo qual acabo de começar é, no fundo, como o padre-boxeur do Exorcista que assumiu o demónio para depois o suicidar.

2. DA EXTRAVAGÂNCIA (HAGIOGRÁFICA) DE RUY BELO

Mal comparado (ou suspendendo a lógica da comparação útil), todas as literaturas prestam culto aos seus «puros» como se de um santoral se tratasse. Começo, pois, por uma impertinência. A primeira edição do Flos Sanctorum de Frei Diogo do Rosário a arrumar os santos «pelos dias dos seus felizes trânsitos», data de 1647. Esta nova disposição, quero crer, assinalou com certeza uma leitura diferente da colecção hagiográfica: a datação, por si só, a par da necessidade pragmática de ordenar a explosão de santos seiscentista, indicia uma maior possibilidade de manipular socialmente o sentido sacrifical do seu passamento. A cronologia do falecimento instala o santo no tempo humano que lhe celebra a morte, espectacularizando-a ou integrando-a num regime de ritualização social. Deste modo, cada dia do ano (em que um santo se cristifica, ou re-presenta o padecimento à imagem de Cristo) é celebrado com uma morte no mundo e um nascimento na bem-aventurança do outro mundo. Mal comparado, assinalar o «feliz trânsito» de Ruy Belo, num certo sentido, é um gesto ritual pelo qual o confirmamos no lugar que ocupa na nossa república das letras. Pretendo, pois, apresentar breves razões do que poderia ser uma coda abrupta: ser clássico é um estado de bem-aventurança.

Tratarei então, dito de outro modo, de observar como o poeta entrou em cena. Joaquim Manuel Magalhães, a quem devemos dos ensaios mais penetrantes e seminais sobre o autor de Boca Bilingue, publicou um conhecido texto na Colóquio/Letras, em 1978, logo após a morte de Ruy Belo. Nos primeiros parágrafos, o poeta é já o outro fantasmático ou, se quisermos, hagiográfico, apresentado como autêntico espelho de virtude. Talvez não seja o primeiro, mas é verdadeiramente o de Joaquim Manuel Magalhães um texto-pedra-de-toque na canonização inevitável de Ruy Belo pelo peso específico da sua grandeza. Uma grandeza hoje consensual, há que dizê-lo.

Seja-me permitido o abuso da citação: «Conto esta história para ilustrar uma grandeza alheia às invejas ‘poéticas’ tão típicas do nosso meio. A sua recusa à competição e ao fanatismo da própria imagem afastá-lo-iam da boca de cena e fariam dele um dos nossos poetas maiores mais indiferentes à necessidade de holofotes críticos voltados sobre a obra que criava, em que acreditou a ponto de lhe ter sacrificado em absoluto a saúde, a tranquilidade diária, quase a própria subsistência económica» (MAGALHÃES, 1978: 46). Interessa-me sublinhar esta ideia de um poeta «fora de cena». Note-se como Joaquim Manuel Magalhães remete para a extravagância – aqui entendida no sentido hagiográfico – do poeta, um poeta que se auto-descentrou em relação ao seu tempo. Nele, a humilitas («não peço ou posso privilégios de poetas», dirá, I:194) substitui a vanitas (e as invejas) da cena pública da poesia portuguesa coeva. Ora é precisamente este gesto voluntário de saída de cena (Ruy Belo, creio, levou toda a vida a sair de cena) que o faz entrar no espaço da exemplaridade. Reconhecerá o próprio poeta que «pouco represento no contexto literário português» (III: 274) ou, ainda, «Marginal, profundamente marginal. O poder não me interessa» (III: 277). O gesto de Ruy Belo vem, na óptica do autor de Os Dois Crepúsculos, moralizar o espaço da praxis poética. A sua extravagância, e não há qualquer paradoxo, é o que o coloca nesse lugar do exemplum, mais central que o próprio centro.

O primeiro impulso exegético de Joaquim Manuel Magalhães assenta numa discursividade verdadeiramente simbólica (talvez não seja abusivo ver no seu texto-tributo de 1978 a colagem de Ruy Belo à imagologia de outros poetas excêntricos da Tradição). Uma simbólica que é, também, um dos modos do texto posfacial do 1º volume da poesia completa do autor de Aquele Grande Rio Eufrates, publicado em primeira edição em 1981: «Li os números de dois bilhetes de autocarro, deixados esquecidos por Ruy Belo numa edição do seu primeiro livro, anotada por sua mão. Um era da carreira entre a Póvoa e Vila do Conde; o outro, da Carris, para qualquer parte de Lisboa» (MAGALHÃES, 1984: 217).

Para o autor de Os Dias Pequenos Charcos, uns acidentais bilhetes de autocarro constituem restos biográficos que transcendem a sua condição material. Acertadamente, vê neles a marca visível (são restos com aura, ou se quisermos, relíquias) da condição deambulatória da poesia de Ruy Belo. Em dois sentidos, pelo menos, Joaquim Manuel Magalhães (por outro lado, um coleccionador – e nós com ele – no sentido benjaminiano) vai ao encontro do poeta: (i) como o autor de Aquele Grande Rio Eufrates, o crítico-poeta presta atenção à «unha pequenina» a que Ruy Belo sempre quis regressar (cf. «Corpo de Deus», I: 178); (ii) o próprio Ruy Belo, praticante – como Joaquim Manuel Magalhães – da exegese dos outros e de si próprio, considerou ser a marca transumante condição intrínseca do humano (cf. «Saudação a um yankee», II: 65; ou III: 147). Uma transumância que o poeta chega a protagonizar na seguinte cena: «eu o poeta instalado o mais que muito aburguesado / um colectivo passageiro num eléctrico» (de «O poeta num eléctrico», TT, II: 59). Quem diz eléctrico diz autocarro e nós voltamos a ver o filme.

Também o ensaio que Eduardo do Prado Coelho dedicaria ao primeiro volume da poesia completa de Ruy Belo seguiu a linha do exemplum. A exemplaridade do poeta inscreve-se, aí, no espaço da aula. Num primeiro momento do texto, na aula universitária. Eduardo do Prado Coelho mostra-nos um poeta anti-academicista, um anti-academicismo que subverte o statu quo universitário. O mais interessante é que o autor de Mecânica dos Fluidos coloca a questão em termos de «dentro» e «fora». Ruy Belo, neste sentido, está do lado de «dentro» e os professores do lado de «fora». A partir daqui, o crítico, com uma notável percepção, remete para o que considera ser o núcleo da poesia beliana: o «caminho de ida para a escola» seria a sua cena primitiva (cf. COELHO, 1984: 154). Assim, ainda que sem ânimo biografista, o crítico cola biografia e poética. Bio-grafia, ou se se quiser, o crítico narrativiza a exemplaridade de Ruy Belo.

Estas narrativizações de cunho exemplarizante são talvez uma manifestação (ou alegorias) do lugar «hagiográfico» de Ruy Belo no contexto da poesia portuguesa mais recente. O papel que se lhe reserva na grande cena da poesia portuguesa contemporânea assenta na singularidade. Num certo sentido, a sua obra é exemplar. Dito de outro modo, como os grandes da Tradição, a obra de Belo revela essa distância óptima em relação a modas e discursos, ou mais esteticistas ou mais ideológicos. Vê-se na obra beliana – diríamos – como que uma virtude do meio termo, de tal forma que é bitola de revisão histórica de excessos ou falhanços.

Assim, a obra de Ruy Belo é uma obra de continuidades. A influência da poesia da década de 50 foi destacada por Fernando Guimarães (cf. GUIMARÃES, 1983: 92). Aproxima-se, então, do núcleo de poetas católicos dos anos 50, como Rui Cinatti ou Pedro Tamen. Neste aspecto, ainda, capitaliza a irmandade com uma figura como a de Eliot, cuja influência foi destacada por Joaquim Manuel Magalhães (cf. MAGALHÃES, 1978: 47). Jorge de Sena é outra das influências reconhecidas pelo próprio poeta. Uma influência, a do autor de Metamorfoses, sem ansiedade, pois Ruy Belo considerava-se um poeta francamente influenciável: «Sim, Jorge de Sena influenciou-me. Como toda a gente me influenciou» (III: 466).

Por outro lado, a sua obra não deixou de vibrar com o impacto do Modernismo. Osvaldo Manuel Silvestre (situando o poeta numa conjuntura tardo-modernista), recorrendo a Adorno, mostrou como Ruy Belo não deixou de ser seduzido pelo imperativo do Novo (SILVESTRE, 1997: 9). Como diria o próprio poeta «A cada momento se tem de inovar, condição imprescindível para se ser fiel à tradição» (III: 87). Ruy Belo soube bem – e aceitou bem – que à poesia contemporânea é inevitável este diálogo com o Modernismo. Deixou, de facto, no ar a seguinte pregunta: «Poder-se-á ser poeta hoje sem ser poeta moderno?» (III: 218). E viu o leitor de poesia coevo como um leitor «educado numa tradição que não pode deixar de passar pelo modernismo» (III: 241). Este reconhecimento é perfeitamente conciliável com o facto de que o seu particular diálogo com o alto-modernismo lhe ser (no que a eventual recepção se refere) favorável. Sobretudo – embora a questão não se resuma a isto – a inteligibilidade da sua obra distancia-se da adorniana «méthexis nas trevas» (cf. ADORNO, 1982: 156). Compare-se, a bem do meu argumento, a poética e a poesia de Ruy Belo com a poética e a poesia (obscuras) de outro nascido em 61, Herberto Helder. Se neste temos uma como que adesão explosiva (ou implosiva) ao moderno, em Ruy Belo o modernismo é incorporado como que em eclipse. É um modernismo pacífico. Assim, ainda que o próprio Belo teça considerações em sentido contrário (cf. I: 190), a inteligibilidade da sua obra – e algo tem que ver com isto a «preocupação de sentido», como lhe chama Fernando Guimarães (cf. 1989: 93) – confere-lhe o dom da comunicabilidade. Jorge de Sena abordou a poesia nestes termos, recordando a incomunicabilidade dos «experimentalismos ocidentais» (cf. Sena, 1977: 250). O diálogo que a poesia Ruy Belo estabelece com a vanguarda, e recorde-se que a sua é uma poesia que se instala na década de Poesia 61 e Poesia Experimental, poderá ser aproximado do que José Guilherme de Merquior chamou «vanguarda pacificada», marca – no entender do mesmo crítico – que entra dentro da configuração do pós-modernismo enquanto «novo estilo histórico» (cf. MERQUIOR, 1979: 6).

Por outro lado, Ruy Belo aproximou-se quanto baste ao sentido intervencionista da poesia neo-realista (sobretudo, purgando-o das suas fraquezas demagógicas). O sentido do compromisso de Ruy Belo com os problemas da História (ou melhor, do momento histórico que lhe tocou viver) nada tem que ver com o ideologismo e o pragmatismo do ainda então sobrevivente neo-realismo. Diz, no prefácio de Homem de Palavra[s]: «Em meu entender, a poesia de intervenção tem de partir de um grande sentido de justiça ou de revolta que o poeta fez seus, como o amor num poema de amor, e tem de ser discreta se não quer ser demagógica» (I: 133). Em Ruy Belo, não se trata tanto de uma consciência porventura trágica da falência daquele modelo. O poeta situa-se já numa posição de descrença apriorística dos discursos ideológicos. Contudo, substitui o tipo de engagement proposto pela opção neo-realista por um humanismo à Dostoievski, como ele próprio reconheceu. A palavra poética é, pela novidade e originalidade intrínsecas, revolucionária, ou se quisermos, visa o melhoramento da espécie humana.

Logo no primeiro livro publicado se enuncia o poder da voz do poeta na polis, um poder na verdade ameaçador pois é um contra-poder: «cuidado com o poeta na cidade / Não há nem pode crescer na rua / árvore mais inútil que a palavra do poeta» (do poema «Aquele grande rio Eufrates», AGRE, I: 60). A espontaneidade natural da árvore contrasta com a visão utilitária da paisagem urbanizada. A cidade, espaço do desenraizamento e da alienação existencial, conta ainda com o poeta como voz – inútil pois não colabora neste povoamento – ameaçadora. O contexto desta palavra revolucionária é já em Aquele Grande Rio Eufrates, o de um país pouco receptivo à poesia (e não só). Neste livro ainda se não trocou esta missão do poeta na cidade pela alegria – irónica – de «ser poeta português» que teremos em Homem de Palavra[ s] . Ainda que ninguém saiba «como ainda é possível a poesia / num país onde nunca ninguém viu / aquele grande dia diferente» (do poema «Desencanto dos dias», AGRE, I: 47). Todavia, desde o primeiro livro Ruy Belo não deixa de remeter para o esfriamento do poema (do seu impulso revolucionário) quando se espraia pelo domínio público. A poesia é, nesse domínio, tão cotizável como qualquer outro objecto de troca: «Os versos que erguemos ao longo dos passeios / coagularam em ilhas que a indiferença / rodeou de silêncio e ao roçar no asfalto / até adquiriram seguras cotações / nos mercados onde vendem as palavras» («Aquele grande rio Eufrates», AGRE, I: 67).

Nova ressonância desta questão viria a emergir em Transporte no Tempo. Aí, surge-nos a figura do poeta público que pactua com o «tempo detergente». A atitude do sujeito poético é a de se demarcar com veemência deste tempo e deste poeta: «Odeio este meu tempo detergente / de uma poesia que discreta até se erótica antigamente / hoje se prostitui numa publicidade / devida a algum poeta público» («Odeio este tempo detergente», TT, II: 75). A de Ruy Belo foi, na verdade, uma campanha surda contra o comércio poético (cf. III: 52). Neste sentido, explora a distinção entre a poesia e a literatura, entendida esta no sentido negativo verlainiano (cf. III: 53): «Numa época em que o poema facilmente circula, é frequente constatar o recurso generalizado a segmentos de linguagem que foram poéticos na origem, na titularidade do inventor, mas que acabaram por perder de mão em mão a primitiva força» (III: 84). É a poesia a caminho do placebo social ou da farmacologia (cf. FLOR, 1997: 189).

Sugiro que na fraternal incorporação dos outros – dos humilhados e ofendidos – na poesia de Ruy Belo há algo whitmaniano (separa-os, e não apenas, o cristianismo do primeiro e o panteísmo do segundo). Refiro-me à incorporação no proteísmo egótico de Whitman (estou a pensar, claro está, em ‘Song of myself’) das «voices veiled». Este democratismo aproxima-se do «grande ofício» da vida do poeta, como lhe chama Ruy Belo: o de tomar como objecto «o homem pisado o homem batido o homem calcado o homem explorado o homem cansado pelo trabalho o homem frustrado na vida de homem que insatisfeito amargurado que tem no tempo a eternidade», como lemos em «Canto vesperal», de Transporte no Tempo (II: 22). Não só a poesia se destina a quebrar a solidão existencial de «todos» os homens e, por essa razão, a todos se destina (leiam-se os versos «Que por todos se faça a poesia / que quebre a solidão nítido nulo / a solidão das armas dos quarteirões / a solidão do quarto a solidão de kafka / Que a todos se destine a poesia» do «Primeiro poema de Madrid», incluído no mesmo livro, II: 23), como também – e arriscamos, sobretudo – a poesia deve dar voz aos que a não possuem. A incorrigibilidade – a ameaça – da poesia reside no «darmos a palavra aos que não têm voz / pois ao silêncio os têm submetidos / Poemas de palavras não de paz mas de pavor / … sob essa superfície de impassível frialdade / sei que se oculta a voz não da humanidade / palavra do mais dúbio dos significados / mas dos homens que dostoievski viu ofendidos e humilhados / Quente e humana embora na aparência fria» («Primeiro poema de Madrid», TT, II: 24). Note-se a precisão que o eu do poema tem por bem realizar: não a ‘humanidade’ mas os ‘homens’. Entendo-o como um total descrédito na mistificação do humano – e Ruy Belo quis uma poesia completamente desmistificada -, um salto em frente em relação a qualquer discurso demagógico. O compromisso beliano tem porventura na seguinte afirmação a sua melhor síntese: «a poesia deve, entre outras coisas, contribuir para fundar uma sociedade mais justa» (III: 22).

Por último, trata-se de uma poesia que incorpora a Tradição literária ocidental, em geral, e a portuguesa, em particular. Com raízes no romantismo europeu, como apontou Joaquim Manuel Magalhães (cf. 1984: 219) e Fernando Guimarães (cf. 1989: 91-93), a sua obra dialoga com os nomes fortes e os ápices da história da literatura portuguesa (séculos XVI, XIX). Entre esses nomes contam-se Cesário, Nobre, (para só citar alguns) e, evidentemente, Pessoa. A irmandade com Pessoa (assumida pelo próprio poeta) vemo-la, entre outros aspectos, na configuração de uma poesia «cerebral», ou se se quiser, na proposta estética de uma poesia que diríamos mineralizada.

De facto, em Ruy Belo o acto da escrita pressupõe um desinvestimento da expansão sentimental do eu. O subjectivo dá lugar ao objectivo, o sentir ao pensar, a tristeza à sua sábia administração: «vã é a palavra do poeta / se não atenuar a dor da vida» («A margem da alegria», MA, II: 108). Há algo de sacrificial nesta atitude: o «sentir» é sacrificado ou, se se quiser, é «guardado na gaveta». Quando se interrompe o contínuo sentimental, o poema acontece. E o poeta nasce. Ruy Belo narrativizou (encenou) esta questão. Enquanto modo paradigmático da sua escrita, não deixou de o projectar num sintagma da sua história individual. Refiro-me a uma das «Imagens vindas dos dias», concretamente a «Pequena indústria». Num ponto do passado (e porque é mítico não tem cronologia), o poeta nasce quando separa o «fazer versos» que dizem o que «sente» de uma escrita que se impõe mesmo depois de «deixar de sentir»: «passei a fazer um esforço e a escrever os meus próprios versos. Escrevia o que sentia e ainda hoje, muitos anos volvidos, guardo toda essa vasta produção na gaveta. Depois deixei de sentir coisa alguma e continuei a escrever» (HP, I: 181). A escrita passa a ser, então, uma indústria pensada.

Esta micro-narrativa (que tem o sentido mítico do nascimento do Poeta), surge-nos significativamente em Homem de Palavra[s], livro em que a bem moderna reflexão sobre o acto da escrita irrompe com mais determinação. Contudo, este topos metapoético da poesia-enquanto-mineral percorre o itinerário poético beliano considerado no seu conjunto. Em Problema da Habitação, o sujeito do poema «A mão no arado» animava o poeta a uma escrita dessentimentalizada: «Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente» (PH, I: 90). No mesmo conjunto poemático, reconhece ainda o sujeito que «Nada na minha poesia é meu / juro por Deus dizer toda a verdade» («Em cima de meus dias», PH, I: 105). O visto, o lido e o sentido é sacrificado «ao fio da meditação» (HP, I: 184).

Seria, de qualquer forma, em Homem de Palavra[s] que, em jeito de proposição metapoética, se viria a explicitar de modo mais claro esta problemática. Remeto para uns versos de «Esta rua é alegre» em que ao mesmo tempo se parodia o convencionalismo romântico de uma poética do sentimento: «Não costumo por norma dizer o que sinto / mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa / Isto, porém, são coisas que há já algum tempo se sabem / e talvez venham aqui para salvar o momento / para salvar romanticamente este momento» (I: 161). Mais tarde, no longo poema «Pequena história trágico-terrestre», dirá o sujeito que o poema é «feira férias da emoção», que a dor existencial é gramaticalizada, pelo que «nada é menos poético do que a poesia» (I: 194). Ou, de um modo metaforizado: «o poema é coisa insípida inodora / Morta na praia a índole aquática / da emoção que na palavra tem a pedra» (ibidem).

Numa talvez evocação do Pessoa-Caeiro, Ruy Belo afirmou: «Dou palavras um pouco como as árvores dão frutos, embora de uma forma pouco natural e até anti-natural porque, sendo a poesia uma forma de cultura, representa uma alteração, um desvio e até uma violência exercida sobre a natureza» (III: 290). Encaixa, pois, perfeitamente no grupo de poetas que Alberto Caeiro lamentou não saberem florir, perspectivando o trabalho poético como um labor limae: «Pedra a pedra construo o meu poema / e é nele que dos dias me defendo / Não sei de emoções manipulo morfemas» (ibidem). Esta manipulação tem por finalidade o sacrifício do factor pessoal. Em Transporte no Tempo, no poema «Madrid revisited», lemos: «Não sei talvez nestes cinquenta versos eu consiga o meu propósito / dar nessa forma objectiva e até mesmo impessoal em mim habitual» (II: 63). De igual modo, no poema «A margem da alegria» o canto poético é visto como «concisa cantilena / cingida de emoção disciplinada ou dissimulada» (II: 105-106). As «minerais palavras de poeta», como são definidas no «Requiem por Salvador Allende» (cf. TTR, II: 204) decorrem, na verdade, de um postulado estético global. A arte, mais do que imitar a vida, disseca-a: «a arte suga insensível a vida / e a face impassível que lhe é indispensável / só a exibe sobre a emoção que sacrifica» («Discurso branco sobre fundo negro», TTR, II: 210).

Pois bem, podemos resumir assim a virtude de Ruy Belo: a sua obra, que nasce em 61 (data já mítica da recente poesia portuguesa), significa um regresso a uma como que «pureza» poética, afastando-se, por um lado, do conteudismo pragmático e ideológico do neo-realismo hardcore falido, e por outro, dos excessos formalistas das neo-vanguardas. Neste sentido, Ruy Belo dialoga com o clássico – que não é incompatível com o seu romantismo (cf. MAGALHÃES, 1984: 219; GUIMARÃES, 1989: 91). Um poeta que, como bem sabemos, defendia nos seus escritos de teoria poética – reunidos sob o título Na Senda da Poesia – o dulce et utile horaciano. A função da poesia entende-a como «compenetração do ‘dulce’ com o ‘utile’ horacianos» (III: 90; cf. ainda III: 18). Note-se, contudo: penso que devemos entendê-lo um clássico na versão maneirista-barroca (outra das manifestações da história literária na sua poética), pois não deixou de sobrepor o deleite à intenção pragmática da poesia (cf. PIRES, 1996: 19).

A História tem destas ironias (na verdade, as ironias só o são pela História): de uma posição de extravagância – a que voluntariamente se votou ao incluir-se no grupo dos «não alinhados» (cf. III: 25) -, Ruy Belo passa a ocupar o lugar central de a sua poesia ser uma poesia de convergências várias. Vinte anos após a sua morte, é já – se o não era em 1978 – um Clássico com maiúscula (o poeta perdoará este levantar de cabeça da letra). É, a sua, uma poesia exemplar.

3. NEM PALAVRAS NEM COISAS

António Ramos Rosa, num ensaio notável, estabeleceu uma forte linha de leitura da poesia de Ruy Belo: é de sua lavra, na origem, o que chamarei a tese da fissura ontológica. O crítico parte do reconhecimento de que existe uma ruptura entre o eu e o mundo. Estamos, claro está, em pleno regime romântico (e católico, diga-se). Introduz, então, a ideia da ontologia beliana em termos de densidade. Assim, a poesia de Ruy Belo, argumenta, visa re-ligar o sujeito ao mundo. É nos seguintes termos que entende a rememoração da infância: «É sobretudo nas evocações da infância que Ruy Belo logra cristalizar imagens que possuem uma densidade ontológica que resiste à corrosão do tempo. São verdadeiras presenças que se erguem na sua pujante materialidade» (1987: 66). Há, pois, uma consumação eufórica da re-ligação. O mundo perdido é recuperado, ou se se quiser, pela memória o sujeito recupera o ser originário. Dirá ainda, neste sentido, o mesmo crítico: «Há um vigor, que é o vigor da presença, nestas imagens que, assim, atingem a plenitude ontológica. Só em imagens como estas logra o poeta estabelecer uma feliz, densa e profunda relação com as coisas, só através delas pode suturar por momentos a ferida originária que marca tragicamente toda a poesia. É numa fulguração da memória, à qual se alia a percepção originária do real, que as coisas adquirem uma materialidade intensa que as torna presenças vivas de um mundo inicial» (ibidem: 67). Gostaria de destacar os seguintes termos: «materialidade» e «presença», sublinhados por «pujante» e «vigor». O poema, neste sentido, será como uma cornucópia que não dá palavras mas coisas. Esta é, do meu ponto de vista, uma leitura bem eliotiana do fenómeno poético. Para Eliot, recordemos, a poesia saudável apresenta-nos os objectos ou, por outras palavras, nela palavra e objecto identificam-se (cf. ELIOT, 1948: 149). Num sentido muito semelhante, Ezra Pound, como recorda Robert Pinsky (cf. 1976: 4-5), conferia um sentido objectual fenoménico ao poema.

O texto de António Ramos Rosa é verdadeiramente seminal pois enuncia o que penso ser outra tese forte (que, na verdade, complementa a primeira): vou chamar-lhe a tese da negatividade (apenas) superada pela poesia. O crítico propõe, também, que a fissura se sobrepõe à reconciliação, ou melhor, que domina por completo a poesia de Ruy Belo. Assim, «não se poderia dizer, portanto, que há na poesia de Ruy Belo uma dialéctica da presença e da privação, porque o negativo nunca é superado ou mediatizado a não ser no plano da realização poética» (ibidem: 71). Atente-se nas últimas palavras. De um lado a negatividade imperativa, mas, de outro, a confiança na poesia como possibilidade de a superar, ou, por outras palavras, de suturar a fissura. Na óptica desta segunda tese, a «presença» e a «materialidade» do mundo inicial (termos utilizados na primeira tese) são transferidos para «substância» das palavras ou da poesia: «Ainda assim, as presenças surgem aqui e acolá como elementos de reconciliação, mais virtual do que efectiva, mas de algum modo actualizados poeticamente, encarnados na substância das palavras» (ibidem: 71). Sublinho «virtual», «de algum modo» e «encarnados». Note-se que a fissura continua a ser jogada em termos de «eu» /«mundo» e que a poesia actualiza as presenças, ou, se se quiser, permite a reconciliação (contudo, e já lá iremos, mais «virtual» do que «efectiva»). Tudo se passa como se a poesia estivesse do lado de fora da relação fissurada do «eu» com o «mundo». Uma posição que ocupa ainda que lhe seja atribuída a missão de superação e falhe. Assim, pode o crítico afirmar que «o canto prossegue na positividade da linguagem» (ibidem: 73), ou ainda, «O canto, na sua energia rítmica e na sua música, revela a infinidade e a força disseminativa da palavra que, no seu excesso e na sua veemência apaixonada, se torna vida inaugural, substância do ser» (ibidem: 74).

A insuperabilidade do negativo não é vista, então, como um produto da palavra. O que pretendo, neste pequeno ensaio, é relevar uma série de lugares da poesia de Ruy Belo em que o problema da re-ligação é colocado em termos de linguagem. Dito de outro modo, a poesia de Ruy Belo diz-nos que a negatividade está nas palavras e na poesia. Ao mesmo tempo, pretendo ver sob esta luz a questão da rememoração da infância. Se António Ramos Rosa a deixou «intacta», argumentarei que um conjunto de lugares desta poesia, mais do que recuperar a infância, ou buscar a sua recuperação, controem um sujeito que também na sua rememoração assiste ao fracasso da re-ligação. Ou seja: mais do que falar da infância, Ruy Belo fala do falar – imperfeito – da infância. A ideia, penso, está contida no «virtual» entre parêntese do autor de Incisões Oblíquas. Assim, desenvolverei esta terceira via – que não invalida as outras duas pois todas elas cabem numa poesia como a de Belo, marcada por Proteu – propondo, como alternativa (na verdade um ponto de apoio como aquele que era necessário ao filósofo para levantar o globo) à imagem da densidade ontológica, uma outra: a da focagem. A face com que o sujeito na poesia de Ruy Belo encara a infância pode ser uma face «embaciada»: «Eu curvo ante a infância a face embaciada» (I: 99). E sublinho «pode ser» porque no contínuo da focagem teremos momentos de nitidez e momentos de turvação. Para mim tem a vantagem de dizer um sujeito e uma palavra inextricavelmente unidos como visão de uma cena que, na verdade, é a própria visão. Por outro lado, a imagem rememorada será eufórica quando nítida mas sempre mantida «à distância».

Esta questão implica recordar alguns aspectos do problema do bilinguismo. A ideia do bilinguismo humano está presente desde os primeiros livros de Ruy Belo. A univocidade linguística é privilégio de deuses, não de homens. Recordemos apenas: Deus é perspectivado como a origem da nomeação dos objectos e dos seres. A linguagem de Deus, neste sentido, é uma linguagem unívoca uma vez que se adequa perfeitamente ao mundo. No poema de Problema da Habitação intitulado «Efeitos secundários», o eu poemático diz-nos ser a divindade a «mais redonda boca para os nomes das coisas / para o nome do homem ou o homem do homem?» (I: 106). A boca redonda – e recorde-se aqui a simbólica do círculo que Nuno Júdice reconheceu na poesia de Ruy Belo (cf. JÚDICE, 1981: 16) – é-o para os nomes das coisas e do homem. A linguagem divina – unilingue, diríamos com o poeta -, própria de um mundo super-lunar, não manifesta qualquer fissura entre a coisa e a palavra que a diz. É no contexto desta língua de deuses que devemos enquadrar o carácter funesto da linguagem humana. Nesta linha, diríamos que Deus é um ser supra-sígnico – recorda Umberto Eco que Deus, ao coincidir com a totalidade do universo, é um «animal não semiótico» (cf. ECO, 1984: 6). Note-se: Deus, na poesia de Ruy Belo, não tem palavras mas sim boca. A ter, teria uma palavra apenas: o seu nome (que não seria signo, de qualquer forma).

Ora, é verdade que, por um lado, a boca redonda de Deus se imiscui no dito pelo poeta. Quando o sujeito se diz, e esta questão é fundamentalmente válida nos dois primeiros livros, diz-se como que vocalizando a palavra divina. Lemo-lo no poema «Mors semper prae oculis», precisamente de Aquele Grande Rio Eufrates: «Narro-me letra por letra para ti / e sou a breve palavra que tu deixas / como uma esteira branca no céu azul do tempo» (I: 39). Há como que uma disponibilidade do sujeito para ser receptor, ou veículo, da palavra divina. O sujeito assume o lugar do intermediário (ele é uma espécie de sacerdote) que articula no tempo (na história) a palavra de Deus. Para sermos mais precisos, Deus é, para além de boca, uma voz de que a palavra do poeta é um vestígio.

Contudo, o sujeito é os olhos finitos pelos quais «O senhor olha finitamente a sua obra» (I: 19). A «vibração» daquele como que estado sacerdotal surge quando deparamos com poemas em que o sujeito reconhece a inevitável filtração humana (a sua) dessa palavra divina. Se, por um lado, temos esse sentido ministerial do sujeito poético, tal não significa uma anulação da sua subjectividade. Façamos uma comparação despropositada. O estatuto do santo na narrativa hagiográfica é o de ser imago da divindade. Isso implica a redução – quando não a anulação – desse eu (na verdade um não-sujeito) enquanto vontade, enquanto desejo. O carácter figural é aí total. Ora, o sujeito poético beliano (já em Aquele Grande Rio Eufratesagencia a inscrição da divindade no poema. O paradoxo (que o não é, na verdade) instala-se: não é a mão de Deus que está por detrás do poema, mas a mão do poeta. Veja-se, justamente, o «Poema quase apostólico», onde temos um poeta sereno – que, como o jogador do pião de Boca Bilingueactiva o movimento de rotação do planeta infantil -, um poeta que «põe o rosto do senhor por trás das suas palavras» (I: 20). O poeta «põe» Deus no poema, ou seja, não é o lugar estático da emergência da divindade. Por outras palavras, Deus é perseguidopelos lábios do poeta (cf. «Vestigia Dei», I: 25), enquanto «rosto decisivo» que se encerra em «todas as palavras com que dissemos os versos» (I: 26), como lemos no poema «Vestigia Dei».

Assim, as palavras do poeta não são apenas as «palavras que deus lhe pôs na boca» («Aquele grande rio Eufrates», AGRE, I: 60). A palavra do poeta é, fatalmente, uma palavra sub-lunar, intrinsecamente imperfeita. Ou bilingue, como viria a dizer. Neste sentido, o sujeito poético assume conscientemente a fractura dela com o mundo. Assim, a boca redonda de Deus que tudo diz perfeitamente, contrasta com a boca do sujeito que produz palavras des-ligadas e que, na verdade, não dizem. Penso ser essa a lição de um verso com que deparamos logo em Aquele Grande Rio Eufrates, o livro de poemas onde a relação vertical do sujeito com a divindade é mais relevante. Para o sujeito, a sua boca (a sua palavra) é o terminus do próprio Deus: «Triste destino o teu: morreres na minha boca» («Aquele grande rio Eufrates», AGRE, I: 67). Na particular cosmogonia deste primeiro livro – em que Deus, muito cristãmente, se revela no mundo -, não poder dizer a divindade é não poder dizer este mundo (sacralizado). O mundo apenas é olhado de perfil, porque mediatizado pela palavra funesta. Em Homem de Palavra[s], onde voltaria a dizer que «mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus» («Corpo de Deus», I: 178), encontramos a seguinte interrogação no poema «Quanto morre um homem»: «Quando eu um dia decisivamente voltar a face / das coisas que só de perfil contemplei / quem procurará nelas as linhas do teu rosto?» (I: 38). Sublinho esta ideia de «coisas» contempladas «de perfil» e o modo interrogativo-dubitativo (exemplar) em que é expressa.

Se Deus é um ser supra-sígnico, o sujeito poético nada mais é do que signos (se quisermos: «Os versos que faço sou-os», I: 34). A consciência por parte do sujeito poético de que dispõe de uma voz própria («Tenho um vocabulário próprio. O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez inchar, rolar umas sobre as outras as palavras», lemos no poema «Não sei nada», HP, I: 180), ou singular, condu-lo a um topos poético que se mantém de certa forma estável ao longo do itinerário poético de Ruy Belo. Refiro-me, muito concretamente, à voluntária submissão dessa voz poética ao que chamarei um princípio de emagrecimento. Se Deus é Verbo (único), a situação humana do sujeito poético implica a multiplicação da palavra em palavras. Pois bem, não deixa de tratar-se de um sujeito poético que procura, num certo sentido, emular (imperfeitamente) a unicidade do verbo divino.

É neste sentido que entendo o princípio de uma poesia de poucas palavras. A racionalidade desta economia vocabular assenta no pressuposto de que o excesso de palavras conduz ao sem sentido («És aquele que no maior número possível de palavras nada disse» («Relatório e contas», PH, I: 116)). Estas reflexões são inauguradas em Homem de Palavra[ s] , publicado em 1969, quando o poeta levava já atrás de si três livros. É então que lhe é possível ler-se a si próprio e opor o passado ao presente poético, concluindo: «Antigamente escrevia poemas compridos / hoje tenho quatro palavras para fazer um poema / São elas: desalento prostração desolação desânimo / E ainda me esquecia de uma: desistência» («Cinco palavras cinco pedras», HP, I: 148). De facto, é possível reduzir o universo poético beliano a uns quantos temas obsidiantes. Um deles – e poderíamos acrescentar a morte, a dúvida, a solidão, entre os mais destacados – é precisamente este da desistência. Repare-se, nos últimos versos que citei, a ironia do «quase esquecimento» deste último vocábulo. E ironia porque, na verdade, o lugar dessa desistência é central na sua poesia. Uma frustração existencial viria a intensificar-se em livros como Transporte no TempoToda a Terra ou Despeço-me da Terra da Alegria.

A exiguidade de palavras proposta como princípio nestes comentários de índole metapoética, contrasta com uma realidade iniludível na poesia de Ruy Belo. A de que, ao contrário de se concentrarem, os seus poemas vão ganhando progressivamente um cada vez mais considerável fôlego discursivo. Se exceptuarmos poemas como «Aquele Grande Rio Eufrates», do primeiro livro, ou «Pequena história trágico-terrestre», de País Possível – são os exemplos mais significativos – verificamos ser essa sobretudo uma realidade a partir de Transporte no Tempo, de 1973 (também o ano da «Pequena história trágico-terrestre»). Esta tendência culmina, no ano seguinte, com «A margem da alegria», poema que é um livro. Contudo, tal não significa o abandono da afirmação, por parte do sujeito poemático, de uma poética mínima. Esta afirmação continua nos livros «crepusculares». É o caso de uns versos do poema «Uma forma de me despedir» de Toda a Terra: «Ora eu que no fundo / apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários / bem vistas as coisas disponho somente de duas palavras / desde a primeira manhã do mundo / para nomear só duas coisas» (II: 177). Na verdade, Ruy Belo volta a referir-se a um conjunto de palavras-chave que estão no âmago do seu universo poético, ainda que a praxis versificatória signifique a extensão dos poemas.

Ora a questão fundamental, do meu ponto de vista, joga-se nos seguintes termos. Temos um sujeito que, através desse princípio económico, pretende emular a univocidade linguística divina. E, penso, não estará distante desta questão a incorporação, no poema, da palavra bíblica. Um exemplo (talvez um dos mais significativos) poderia ser «Levanta-te e caminha, hesitante palavra», o conhecido primeiro verso de «Ce funeste langage», poema introdutório de Boca Bilingue. Através da apropriação da fórmula bíblica, em certo sentido, temos o sujeito no lugar de uma imitação potencialmente transgressiva. E digo potencialmente porque Ruy Belo em nenhum momento explorou esta apropriação enquanto gesto, diríamos, herético.

Ainda que, isso sim, venha a desinvestir de sentido a própria omnipotência criativa de Deus. Num livro final como Toda a Terra, a divindade (e a questão passa pela perda «biográfica» da fé) é reduzida a um jogo de significantes: «deus é só um nome e só pode criar / se é que o pode um só campo semântico / que deixa dar o nome de divinas a coisas tão terrestres como o mar / para citar apenas um exemplo» (do poema «Ao regressar episodicamente», TTR, II: 250). O criacionismo é abertamente desclassificado (duvida-se da própria capacidade de o seu nome criar campos semânticos), e o próprio mundo – como consequência desta dessacralização – adequa-se mal ao significado do vocábulo divino.

Esta questão é de importância capital uma vez que mostra bem em que termos se está a jogar a relação do sujeito com o mundo (os objectos, as coisas). Não só se desinveste de sentido Deus como as palavras e as coisas. Algo que se manifesta já em Problema da Habitação. Lemos aí, nos «Versos do pobre católico»: «Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar» (I: 112). Este verso é significativo: alia o problema das coisas ao problema da linguagem. O mundo – a sua densidade, ou a sua focagem – depende da mediação da linguagem.

Temos, pois, que a fórmula «Levanta-te e caminha» entra no jogo de palavras que é a poesia. Que em Ruy Belo, recordo-o, não deixa de ser perspectivada como uma techné, um trabalho que, enquanto indústria (ou artesanato, se se quiser), pode oscilar entre o refúgio e o desporto. Nada do sentido mistérico ou mágico de uma palavra divina (a única que pode coincidir com o mundo). Polir o poema é um gesto que permite ocupar o tempo: «todo o tempo se lhe ia / em polir o seu poema / a melhor coisa que fez» («Cólofon ou epitáfio», HP, I: 186). Ainda assim, não deixa de ser um ofício que proporciona segurança ao sujeito: «Aqui é que eu coisa feita de dias única razão / vou polindo o poema sensação de segurança» («Lugar onde», HP, I: 143). E noutro lugar dirá: «regresso então à versificação / e encontro nos papéis o meu segundo mar» («Exercício», HP, I: 163). Contudo, numa sugestão talvez heideggeriana (cf. III: 80), esse trabalho é visto também como um jogo: «O meu desporto é a versificação / e troco o próprio verão por três quatro palavras / dessas a que é alheio o coração» («Encontros e desencontros», DTA, II: 318). Ou, mais explicitamente: «Do jogo é que ninguém me livra / pois caio nele de borco / e palavra por palavra / assim alinho o meu verso» («Os cemitérios tributários», HP, I: 148). Anos mais tarde, ressurgiria esta mesma ideia em Transporte no Tempo, numa proposição que, significativamente, retira qualquer transcendência ao trabalho da escrita: «as aliterações são dos meus pratos favoritos» («Poema de natal», II: 73).

O poema, «pura coisa de palavras», justamente pela sua condição de linguagem leva a marca da negatividade. Ruy Belo opõe, desta forma, a poesia ao poético ou procura o «poema detrás do poema» (TT, II: 59). Assim chegamos, completando estas reflexões metapoéticas, ao topos da vacuidade da palavra poética. Esta questão, do meu ponto de vista, surge num momento final da poesia de Ruy Belo. Remeto, sobretudo, para Toda a Terra, livro verdadeiramente de despedida para o poeta. As palavras, neste momento, deixam de remeter para outro lado, impõem-se como exterioridade pura. Como vampiros, não se reflectem no espelho: «palavras / que nem mesmo conseguirei / ver no espelho onde aliás nada vejo a não ser as gengivas e os dentes» («Ao lavar dos dentes», TTR, II: 170).

Na verdade, há como que uma desistência (palavra-chave, recordemos) na fé colocada – mas nunca de forma absoluta pelo consubstancial bilinguismo – na possibilidade de as palavras revelarem o mundo. Dito de outro modo, tudo se passa «como se porventura escrever fosse mais alguma coisa do que escrever» (ibidem). «Fosse», mas não é. Assim, «as palavras são somente palavras / nem terríveis palavras somente palavras» («Nem sequer não», TTR, II: 201). Será em Despeço-me da Terra da Alegria que teremos, porventura, a mais dramática assunção do esvaziamento da palavra: «Não me demoro ou moro em sítio algum / já nada significam as palavras» («Despeço-me da terra da alegria», DTA, II: 299).

Contudo, já em Aquele Grande Rio Eufrates encontramos a ideia de que o mundo, porque é nomeado, se separa do eu: «Demos outrora um nome a cada coisa / houvemo-las assim por nossas e opusemo-las / dentro de nós à natureza exterior» («Aquele Grande Rio Eufrates», AGRE, I: 61). A separação é, pois, também produto da linguagem humana. As palavras mediatizam a relação com o mundo, que por esse motivo, é inalcançável. Note-se, como medeiam entre o sujeito e a natureza: «palavra de que tu, ó árvore, dispões para vir até mim / do alto da tua inatingível condição» («Quasi flos», PH, I: 73).

A questão emergirá, ainda, no tecido poemático sob a forma de interrogação: «Agora aqui relembro e pergunto: / Qual é a realidade de tudo isto? Afinal onde é que as coisas continuam / e como continuam se é que continuam?» («Através da chuva e da névoa», HP, I: 175-176). Este é uma das linhas que pode assumir a reflexão metapoética sobre a relação do sujeito e a realidade que o rodeia. Podemos, de facto, encontrar uma série de lugares que dizem a rarefacção do mundo. Em Homem de Palavra[s] deparamos com a seguinte imagem: «Qualquer que fosse a paisagem, a mesma paisagem: a terra calcinada, o canto das cigarras, o ar espesso do vapor a provocar a rarefacção das coisas vistas e a dar-lhes um ar de miragem» («A pressão dos mortos», HP, I: 182-183). O mundo adquire a consistência de uma miragem. E note-se: é paisagem, isto é, imagem do real filtrada pelo olhar do sujeito. Voltando a pegar na imagem que propus, é como se estivéssemos agora diante do regime óptico da desfocagem.

Assim, como lemos em Toda a Terra: «Sempre entre mim e ao que chamam coisas há-de haver palavras / e dirão que há-de haver não só algum sentido para as coisas / mas um sentido seja ele qual for para a merda da vida» («Um quarto as coisas a cabeça», TT, II: 68-69). O real deixa de ter, nestas formulações, um outro lado e, deste modo, o que fica é a consciência de que se não pode devolver esse sentido íntimo do mundo: «Como dizer-lhe que tudo é esta terra / que outra terra que houver é desta terra / que há gestos inúteis nas melhores das mãos / que nada tem no fundo algum sentido / que é escusado que não há saída / que se qualquer sentido tem a nossa vida / é só no fundo ver passar o tempo / pensar alguma coisa olhar as folhas / enquanto o noite súbita não desce? Como dizer-te que não há coisas por detrás das coisas?» («Meditação anciã», TTR, II: 222).

O mundo tem, então, a par da sua rarefacção exterior, um existência subjectiva: «passeio no jardim a cena passa-se no espírito», concluirá em «Enganos e desencontros» (DTA, II: 311). Uma cena que, porque pensada, leva a marca da negatividade: «pensar é o que não nos leva às coisas» («A fonte da arte», TTR, II: 297). E é uma realidade metamorfoseada: «As coisas em que penso não existirão muitas vezes talvez a não ser / no meu pensamento ou então o meu pensamento modifica-as / dá-lhes possivelmente uma forma diferente da que têm ou terão na realidade» («Ao lavar dos dentes», TTR, II: 169).

Outro modo que assume a reflexão sobre a impossibilidade de superar a negatividade é a de que palavras e coisas, na sua intrínseca vacuidade, oprimem o sujeito. Em Toda a Terra encontramos dois poemas em que se formula esta questão: «As coisas que me cercam assassinam-me / rodeiam-me possuem-me dominam-me / e só hão-de parar depois de me haverem esmagado» («Ao regressar episodicamente…», TTR, II: 251); ou, ainda, «Sinto-me devorado pelas coisas / há coisas sim há as dispersas coisas» («A sombra o sol», TTR, II: 269). Por seu turno, também as palavras são destrutivas, «palavras que nomeiam que destroem / palavras matadoras mais do que punhais» («Encontro de Garcilaso…», TTR, II: 244). E o terrível das palavras é o serem-no apenas, como dissera em «Nem sequer não»: «aqui onde as palavras nunca serviram nem os sentimentos / nem sequer as ideias nem sequer as coisas / aqui onde as palavras são somente palavras / nem terríveis palavras somente palavras» («Nem sequer não», TTR, II: 201).

Gostaria, num remate que se perfila como sugestão a exigir um futuro desenvolvimento, recordar aqui a revisão da poesia romântica (um exemplo: a de Wordsworth, um dos nomes que têm sido apontados como referentes fundamentais para a poesia de Ruy Belo) levada a cabo por Paul De Man. Ao contrário dos new critics, De Man, na esteira, entre outros, de Heidegger (cf. «The Origin of the Work of Art», 1971), parte da separação absoluta do sujeito e o objecto e não vê a poesia romântica como um espaço de «reconciliação» mas de «conhecimento negativo». O autor de Blindness and Insight colocaria a questão também em relação à poesia mallarmeana: «El poeta sabe que no puede vivir en la plenitud de una unidad natural del ser; también sabe que su lenguaje no tiene el poder de recuperar esa unidad, ya que es de por sí la causa principal de la separación. Pero se sobrepone a la desesperación de este descubrimiento objectivando su conocimiento negativo y convirtiéndolo en una forma cuyo contenido es ese conocimiento mismo. El poeta espera así salvaguardar la posibilidad futura de su obra, sustituyendo la inútil búsqueda de la unidad por la contemplación de su próprio fracaso» (apud WATERS, 1996: 54).

Proporia, então, como alternativa a essa poética (e ontologia, se bem que foi aqui um questão marginalmente tratada) da presença – tal como a enunciou António Ramos Rosa nas duas teses que considerei – uma poética da negação. Na verdade, uma representação não mediada, recorda ainda De Man num conhecido texto sobre Nietzsche, é uma aporia ou, melhor ainda, um absurdo lógico (cf. MAN, 1990: 119). No consubstancial bilinguismo humano e nas reflexões de índole metapoética que fui relevando, deparamos com uma poesia que, nunca ocultado o seu carácter de linguagem, assume a sua própria negatividade. A poesia, dirá Heidegger, liberta a linguagem para que seja apenas linguagem (cf. HEIDEGGER, 1971: 74), e a obra de arte não resolve o conflito inerente ao princípio da negação: a obra de arte torna-o visível.

Ruy Belo, ao seu modo, reconheceu a inexistência de poesia fora do texto: «A existência da poesia fora das palavras dificilmente a concebem as modernas teorias poéticas» (III: 75). É a partir desta assunção que, segundo penso, devemos entender a vocação do gesto poético beliano em direcção a como que uma poesia after word, a busca do poema para além do poema, ou a atracção de um silêncio que em si é mais poesia que a própria poesia. Assim, há uma plenitude poética que é a de «cantar / como quem tivesse nenhum pensamento» (I: 34), e há um sujeito que quer «começ[a] a cantar / como quem do poema se esqueceu» (I: 82), ou, ainda, «só agora findas as palavras eu pressinto / pela primeira vez haver talvez algum poema / por detrás do poema pura coisa de palavras» (II: 59). O eu lírico sabe de si que «dizer e ser são para mim a mesma coisa / sou o rei do inexorável reino das palavras / palavras que nomeiam que destroem / palavras matadoras mais do que punhais» (II: 244). Ora, sobre este modo homicida das palavras direi mais adiante no ponto «O regresso como crime (Billy the Kid)».

4. UT PICTURA (FOTOGRAFIA / FOTOGRAMA) POESIS

Este ponto entendo-o como um parêntese (ou didascália). Vou partir do facto, para que já foi chamada a atenção (cf. MAGALHÃES, 1981: 337), de a poesia de Ruy Belo estabelecer um diálogo com diferentes objectos culturais. Sejam eles: poemas e poetas, arquitectos, peças escultóricas, pinturas, fotografias ou cinema. É sobre estes últimos modos de expressão artística que vou tecer algumas considerações. De resto, a relação intertextual com a fotografia e o cinema foi assumida pelo próprio poeta. Homem de Palavra[ s] será o livro de Ruy Belo onde mais se nota (e onde o poeta nota) a presença do cinema. Confessa no prefácio à sua segunda edição (1978): «A influência do cinema é notória neste livro, mais que em qualquer outro meu. Mesmo poemas realistas como Aos homens do cais e Os estivadores foram escritos sobre diapositivos, com o campo do olhar já claramente delimitado. Mas Humphrey Bogart e principalmente No way outVício de Matar e Esplendor na Relva são poemas onde o cinema me ensinou a ver» (I: 137). Ruy Belo insistiria nesta lição cinematográfica do olhar em Na Senda da Poesia (cf. III: 92).

Não me interessará tanto, neste momento, a investigação de como certos recursos cinematográficos podem ser aplicados ao poema. É o próprio Ruy Belo a reconhecê-lo quando, na explicação preliminar à segunda edição de Homem de Palavra[ s] , remete para o uso do suspense (I: 134; cf., ainda, III: 279). De facto, num poema como «Vila do Conde», temos um trabalho poemático algo hitchcockiano. No âmago do suspense está a ansiedade do espectador que sabe o que vai acontecer à personagem (que, por seu turno, o ignora). Suspense é mostrar ao espectador, por exemplo, uma bomba debaixo de uma mesa, cuja existência é desconhecida pela personagem em cena. A bomba, no caso de Ruy Belo, será a sugestão de ‘Conde’ no par ‘onde’ e ‘esconde’ repetidos ao longo do poema.

Num outro texto, Ruy Belo referiria a possibilidade de investigar o papel da montagem na poesia contemporânea. A sugestão, sabemo-lo, não é nova uma vez que é bem conhecido o papel que ela desempenha em poetas modernistas como Eliot e Pound. Gostaria, por outro lado, de deixar uma sugestão. A da utilização no poema do close-up. Considerem-se os seguintes versos de «A margem da alegria»: «ou apenas falar de uns olhos onde havia a água da doçura / e à volta um rosto paciente e sereníssimo / bastante para alguns primeiros planos de um filme a preto e branco» (II: 90). Talvez se possa ver aqui indiciada a utilização desse outro expediente cinematográfico. É notória, ao longo do itinerário poético beliano, a fixação da visão do sujeito poético no «rosto» ou «face» e, sobretudo, nos «olhos» ou no «olhar».

Ruy Belo utiliza o cinema como Texto citável. Como faz com a Tradição literária, ainda que em muito menor escala, o cinema é depósito de referências que se incorporam ao poema como incrustrações culturais. Um bom exemplo temo-lo quando remete para O Último Ano em Marienbad de Alain Resnais: «Ainda este ano talvez em marienbad / eu vi mulheres curtidas pelos lutos / Mal de morte é o meu / em plena posição de pé às três da tarde / em meio do movimento do rossio / sentado à tarde no cinema em dias de semana» («Nada consta», I: 170). Neste caso concreto, a referência ao filme, como que em epígrafe, transporta o sujeito a um momento e a um lugar concretos. Noutro poema, um outro filme funciona como speculum que devolve ao sujeito da imagem da realidade: «Eu a miséria da minha terra / contemplei-a ao natural / enquanto vi no cinema / como se vive em beavar canal» («No way out», I: 149). Atente-se, desde já, na dialéctica real/ficção que aqui se pressupõe. Algo semelhante ocorre no poema «Um dia uma vida»: «tu / morreste muito antes de haver visto no cinema como / se morre em vida mais do que em veneza» («A sombra o sol», II: 285). Neste exemplo, a imagem cinematográfica da morte (sugerida por Morte em Veneza de Lucchino Visconti), constrasta com a mortalidade real do sujeito. Aponto apenas alguns exemplos, sem ânimo para ser exaustivo. Casablanca (cf. II: 160), Chaplin (cf. II: 185), Fellini (cf. II: 206), são outras das referências ao mundo cinematográfico que podemos encontrar.

Insisto no sentido parentético deste ponto. O que pretendo é considerar a eventual contiguidade entre um poema e uma fotografia, um fotograma ou sequência de fotogramas, como um correlato do preceito horaciano ut pictura poesis. Uma hipótese que começarei por legitimar (apenas em parte) com as palavras de Belo. É, como sabemos, em «Os fingimentos da poesia» (I: 183-184) que o poeta, remetendo para a lição de um Da Vinci, aproxima o trabalho poético do trabalho pictórico (cf., ainda, III: 74). Este fecundo trânsito entre o visual e o verbal fez as delícias dos poetas barrocos, uma questão excelentemente estudada por Ana Hatherly (cf. 1997: 75-87). Há também, em Ruy Belo, um culto pela imagem visual ao escrever sobre diapositivos e sobre personae cinematográficas, sobre romanas pintadas e sobre estátuas. E, sobretudo o que me vai interessar aqui, se para os nossos barrocos pintar metaforiza o acto da escrita (cf. ibidem: 80), a imagem fotográfica, o cinema (o fotograma, a imagem cinematográfica) ensinaram o poeta a ver, volto a sublinhar.

Tomo como ponto de partida os seguintes versos de «Pequena história trágico-terrestre», do livro País Possível: «Nem só de mar é feita a minha praia / a vaga vaga que vem vindo enquanto viva / e que fica na página na forma de palavra / palavra fotográfica de coisas» («Pequena história trágico-terrestre», I: 194). Repare-se, pois, como afirmativamente a palavra poética é considerada uma fotografia. A natureza (a «vaga», que aqui a substitui em sinédoque) fica no texto poemático, como se de uma fotografia (ou, arrisco, de um fotograma) se tratasse. As coisas (res), como numa câmara-escura ou na emulsão fotográfica, são reveladas nas palavras (verba). Assim, creio residir aqui o interesse de Ruy Belo pela fotografia (e, consequentemente também, pelo cinema): a fotografia fixa o instante das coisas, isto é o momento único em que a sua unidade não é estilhaçada pela passagem do tempo. Leia-se o poema «Elogio de Maria Teresa», de Transporte no Tempo: «São retratos diferentes de quem foste um breve instante / e nele floriste e apenas não murchaste / por haveres ficado um pouco mais em tais fotografias» (II: 62). O breve instante fixado na fotografia não «murcha». Neste sentido, a fotografia não é aqui entendida como uma técnica de reprodução sem aura (cf. BENJAMIN, 1992: 92), mas sim como o resgate das coisas e dos seres da imersão no tempo alterizante. Considere-se, ainda neste sentido, «A rapariga de Cambridge», incluído em Homem de Palavra[s], outro poema sobre um suporte fotográfico. O sujeito poético, com Shakespeare como pano de fundo, diz-nos que trocaria o quotidiano (o seu reino) pelo momento de uma fotografia: «O meu reino pela rapariga de cambridge / Se eu a conhecesse mas no momento da fotografia» (I: 157).

Este poder de fixar o momento não deixará de encerrar uma analogia com o discurso pictórico: «sei algumas coisas por exemplo o / impressionismo fixação do instante na pintura» (do poema «Pequena história trágico-terrestre», I: 194). Um poema em que a mesma ideia é explorada, temo-lo em Transporte no Tempo. Uma figura feminina, Helena, regressa do passado por intermédio de uma fotografia: «helena deste outono madrileno só porque a fotografia / lhe permite sair do labirinto desse verão onde a deixei» («Solene saudação a uma fotografia», II: 52). Veja-se como a rememoração é suscitada pela (e como) fotografia. Um outro exemplo do que digo temo-lo no poema «O girassol de rio de onor», onde se diz: «nós que não temos e nunca tivemos / coisa pequena como uns palmos de país / pomos tudo o que somos nestes seres que passamos / e nos fixamos só em certas fotografias que tiramos / Era aquele julgo juro o girassol de há anos / mas nós que como sombras aqui passamos / porventura seremos os que éramos há anos?» (II: 57). Fixamo-nos apenas em fotografias.

Arriscaria mesmo mais, dizendo que os conteúdos recolhidos pela memória afloram na consciência do sujeito como fotografias, isto é, como fulgurações de instantes. O instante é imobilizado, como um insecto em âmbar. E a palavra, deste modo, visa conservar algo da realidade das coisas. O instante congelado fixa a sua realidade mais do que a sua instalação no tempo. O tempo, que é essencialmente alterizante, é agente da sua constante destruição. Por outras palavras, se no tempo as coisas – e os seres – exibem a sua mortalidade, na palavra fotográfica contrapõem-se a esta lógica mortal.

O cinema imortaliza olhares e, de igual modo, é possível ao sujeito cruzar os olhos com uma romana do século segundo. Esta é a lição de um poema como «Humphrey Bogart»: «Era a cara que tinha e foi-se embora / mas nunca foi visto como agora […] Ganhámo-lo ao perdê-lo. Não se perde um olhar / não é verdade meu irmão humphrey bogart» (HP, I: 147). Por outro lado, o olhar da romana fixado por uma pintura, de um modo diríamos modernista, aproxima séculos distantes: «Moldaram-te esse rosto abriram-te esse olhar / decerto expressamente para que uns dezoito séculos mais tarde / te pudesse encontrar quem mais que tu morreu / mas te ama ó mulher perdidamente» («Declaração de amor a uma romana do século segundo», TT, II: 34).

Noutro poema, a romana (o seu olhar transportado no tempo) chama-se Deanie Loomis. Em «Esplendor na relva», citado pelo próprio Belo como um dos poemas que é um bom exemplo de como o cinema o ensinou a ver, a irrealidade (a ficcionalidade) da personagem feminina é contraposta às mulheres (reais) por entre as quais caminha: «Eu sei que deanie loomis não existe / mas entre as mais essa mulher caminha / e a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura resiste» (HP, I: 173). Loomis, fixada nos fotogramas de uma película, é animada por um efeito de realidade além da própria imaginação.

Contudo, se tanto fotogramas como fotografias conservam instantes a-temporais (fora da racionalidade do tempo), também elas são mementa mori. A imagem cinematográfica, apesar da sua ilusão de movimento, é também uma marca da mortalidade dos seres. É verdade que, como antes vimos, Ruy Belo não concede excessiva importância ao poema «Na morte de Marilyn». Contudo, penso ver nele uma afirmação do cariz fúnebre das imagens fílmicas e, por extensão, das imagens fotográficas. Diz-nos o sujeito que Marilyn «estava tão sozinha que pensou que a não amavam / que todos afinal a utilizavam / que viam por trás dela a mais comum imagem dela / a cara o corpo de mulher que urge adjectivar / mesmo que seja bela o adjectivo a empregar / que em vez de ver um todo se decida dissecar / analisar partir multiplicar em partes» (II: 53). A analogia entre o discurso fílmico e o discurso poético está uma vez mais presente. A imagem fílmica é uma imagem dissecada – uma imagem de morte – que faz explodir o todo (o ser vivo) em favor da multiplicação de partes (os fotogramas) mortas. Ora, o mesmo acontece com a palavra poética (o adjectivo «bela»). As palavras constroem uma «comum imagem», ou se se quiser, uma imagem dissecada da mulher real (um supor: Norma Jean).

Assim, se as imagens são conservação, são igualmente monumentos fúnebres. O sujeito, que antes reconhecia no poema «O girassol de rio de onor» a possibilidade de fixação nas fotografias, num poema como «Um dia uma vida» conclui: «eu agora nem mesmo me revejo já / nessas fotografias nessas outras tantas mortes» (II, 232). Na verdade, a definição possível da sua visão cinematográfica (ou fotográfica) poderia ser um verso do poema «Em cima de meus dias»: «com um olho vasado transpareço o meu passado» (I, 105). Uma proposição que assentaria bem tanto como definição da câmara fotográfica ou de filmar: ambas, como um ciclope, levam a marca da mortalidade.

A palavra poética, como a fotografia, tem um poder relativo sobre o tempo. Por um lado, possibilita ao sujeito dizer «Eu tinha nas mãos então meia dúzia de nomes / quando às vezes os pronunciava o tempo rodava e parava» («Uma árvore na minha vida», TTR, II: 185). O sujeito poético, instalado numa temporalidade que diríamos heraclitiana (o tempo roda inexoravelmente e é, consequentemente, alteridade), ao mesmo tempo, como deixam entrever os versos de Toda a Terra antes transcritos, contrapõe a palavra poética a essa dinâmica alterizante. Assim, a palavra pronunciada – dita – faz: (i) parar o tempo, (ii) rodar o tempo. Considero fulcral esta noção de um tempo simultaneamente dinâmico e estático. Uma noção que tem na rotação do pião, do poema «O jogador do pião» de Boca Bilingue, a sua imagem mais eloquente. E uma noção de tempo que tem a sua versão, diríamos, mecânica, no estatismo e dinamismo presentes no suporte fílmico.

A palavra é o «modo humano de morder o tempo» («Miséria e grandeza», AGRE, I, 45), um modo de negá-lo (no poema «Requiem por Salvador Allende» de Toda a Terra lemos os seguintes versos: «Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água / sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo / o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia / talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado / ombro a ombro com gente analfabeta», II: 203), que é o mesmo que dizer que o podemos apreender ou deter. O ofício poético tem essa função (ou, se quisermos, este poder). Remeto, sem querer abusar da citação, a um passo de «Um dia uma vida», outra vez de Toda a Terra: «Vindo da agricultura e da cultura por / folhas de terra e páginas de livros / ordenho umas palavras leves e leitosas / e com elas procuro apreender deter o tempo / obrigá-lo a parar e impedi-lo de passar» («Um dia uma vida», TTR, II: 234). Deter o tempo não significa aqui a sua estase absoluta. Significa, sim, que ao poeta é possível, captando-o pela palavra, tentar contrapor-se ao seus efeitos mortíferos. Assim, se o tempo é essencialmente morte, a palavra poética, o poema, podem resgatar instantes. É este instante que a palavra condensa. Contudo, a analogia com o registo fotográfico ou cinematográfico implica a ideia de que a palavra é, de igual modo, congelação (isto é, morte) de algo morto. Também a palavra é simultaneamente fixação e marca fúnebre. O carácter funesto ou bilingue da linguagem assenta nesta ambivalência. Ou, se quisermos, temos tornada visível a luta, ou o conflito, pela (impossível) eternização do instante (cf. III: 160).

5. O REGRESSO COMO CRIME (BILLY THE KID)

O «canto próprio» do poeta, «não dicionarizável» (cf. o poema «Em louvor do vento», TTR, II: 143) é entendido pelo sujeito poético de diferentes poemas dos livros de Ruy Belo como uma canto vesperal, irrompendo, em diversos momentos, imagens da natureza – o poeta vem tanto da «cultura» como da «agricultura», líamos mais acima – para dizer essa palavra poética intrinsecamente outonal. O verso que melhor condensa esta ideia encontramo-lo logo em Aquele Grande Rio Eufrates, no poema «Segundo poema de outono»: «Haverá outra poesia que não / a que cai nas tristes / folhas de outono?» (I: 52). No mesmo livro, o eu do poema «Advento do anjo» proporá ainda outra vez a homologação do trabalho poético à queda de folhas no outono: «Percamos palavras como folhas / perdem no outono as árvores» (AGRE, I: 48).

Recorde-se, uma vez mais, como Alberto Caeiro lamentava que os poetas não soubessem ‘florir’ (ele próprio um poeta que não floriu). Na versão de Ruy Belo, contudo, o ‘florir’ é substituído pela ‘queda’ das folhas. A imagem vegetal nos dois poetas sugere diferentes analogias com o trabalho poético: o ‘florir’ enquadra-se bem na (pretendida) visão virginal do mundo proposta por Caeiro, enquanto que em Ruy Belo a queda outonal das folhas aponta para o sentido elegíaco da sua poesia. Osvaldo Manuel Silvestre, no estudo introdutório a uma recente edição de Boca Bilingue, chamou a atenção para este carácter elegíaco (intrinsecamentete elegíaco) da poesia de Ruy Belo. Diz-nos que «O poema, ‘símil da lábil criança’ e aspiração sempre nostálgica à ‘mais redonda boca para os nomes das coisas’, é por definição elegia, monumento fúnebre, lápide funerária de si mesmo. Linguagem funesta, porque irredutivelmente bilingue» (1997: 20).

O motivo da caducidade das folhas recorreria em Problema da Habitação: «A poesia é uma loucura de palavras / espectáculo de folhas o poema» («Prince Caspian», PH, I: 82). Também na «Canção do lavrador» temos a mesma temática, conjugada aí com a atenção do sujeito às condições duras do trabalho do campo. Do mesmo modo que o lavrador extrai a sua vida da terra, de que depende e com a qual se confunde, também o poeta deve ser os seus versos. A irmandade, neste sentido, de ambos os ofícios determina o convite: «Poeta não escrevas lavra» (I: 35). A figura do lavrador não deixa de sugerir, ela própria, o sentido elegíaco do trabalho poético. Ao mesmo tempo introduz a ideia de uma trabalho inevitável ao poeta. Canto e vida, como lavra e vida, fundem-se de forma inextricável. Ao poeta, o «outono punitivo» não autoriza «desistir de cantar» enquanto vive (cf. o poema «Espaço para a canção», TT, II, 19). Um canto que nos é dado neste mesmo livro crepuscular, Toda a Terra, como o canto do urogalo, que «canta solitário e triste» (II: 70).

Será também neste sentido que Ruy Belo se considerou a si próprio um «profissional de mortes» (III: 38). Esta afirmação, passa, evidentemente, pelo desejo de consumação do regresso ao lugar matricial da terra. Contudo, entendo-o, também, como um modo de dizer o poder homicida da palavra poética. Se, na poesia de Ruy Belo, todo o «caminho é de regresso» (a transumância do sujeito poético é regressiva), esse regresso acontece como se o sujeito voltasse «ao local do seu crime» (I: 103). Aqui está o sentido deste ponto como glosa. Se a poesia é fúnebre, é elegíaca, é-o, do meu ponto de vista, por ser marca de um crime. Sigo, neste sentido, a linha de leitura já enunciada no ponto deste ensaio intitulado «Nem palavras nem coisas». A negatividade da palavra pode assumir a forma de um homicídio. A palavra – funesta, bilingue – é ela própria agente da fractura do sujeito, que não entendo fora desta linguagem, pelo que o homicídio é, de certo forma, involuntário (ou, se se quiser: é absolutamente involuntário e, ao mesmo tempo, absolutamente voluntário).

Eis a lápide (ou lapidarmente): «Ao escrever mato-me e mato» (III: 290). Neste sentido, aproximo o sujeito poético beliano do que considero ser uma sua transposição heterónoma: a figura de Billy the Kid, do poema intitulado «Vício de Matar» (HP, I: 150-151). Billy, um ser em constante demanda – em permanente itinerância – de um lugar de refúgio. Proponho que se tenha em conta o desdobramento da figura de Billy: por um lado, ele é aquele que «nunca soubera fugir», aquele que persegue a morte dos «outros», aquele que não sabe que «bastava um gesto», aquele que nunca «pergunta para onde há-de ir»; por outro lado, é também o que «conhece agora o seu destino», o que «leva um tiro e então já sabe / para onde sempre quisera ir». Distingue-os um diferente saber: a perseguição da morte dos outros é, na verdade, um desvio em relação ao verdadeiro programa de consumação da sua demanda de refúgio: «Persegue a morte na pessoa dos outros / quando era nele que a devia afinal perseguir». Por outro lado, «Mata inimigos e mata amigos». Inimigo de si próprio e dos que lhe estão próximos (os amigos ou «a gente de quem ele gosta»). O crime, neste sentido, é um crime vicioso.

É sob esta luz que interpreto o motivo que chamarei, com alguma liberdade, ruptura das origens genealógicas. Um motivo que, como um refrão, percorre (ainda que com intensidade diversa) os diferentes livros de Ruy Belo. Uma imagem de Aquele Grande Rio Eufrates, imagem que ecoa motivos barrocos, servir-nos-á de epígrafe: «sou dos edifícios da cidade / um dos que hão-de ruir amanhã / Tombaram-nos primeiro os avós / e chega já a vez dos nossos pais / Quando faltar um choupo no caminho da infância que vai dar ao rio / receberemos no rosto a morte» («Mors semper prae oculis», I: 39). Como podemos constatar, o eu do poema coloca-se numa linha existencial (um cenário do passado) a que falhou já a origem genealógica.

Diante deste verso que nos diz que a morte será recebida quando faltar «um choupo no caminho da infância», tenhamos presente o ensaio, a que já fiz referência, de Eduardo do Prado Coelho (cf. 1984), sobre o «caminho de regresso à escola» como cena primitiva da poesia de Ruy Belo. Estou perfeitamente de acordo com a interpretação que dela faz o crítico. Contudo, como já tive oportunidade de afirmar, mesmo sendo todo o caminho caminho de regresso, nem esse caminho nem esse regresso são absolutamente triunfais. E toda a leitura de Eduardo do Prado Coelho vai no sentido de densificar (volto ao termo utilizado por António Ramos Rosa) o planeta infantil beliano. Ora o que acontece, pelo contrário, na poesia do autor de Toda a Terra é mais complexo (ou mais completo, se se quiser). A morte é, para o sujeito poético, o seu «planeta desde tenra idade» (I: 180). E não esqueçamos a cena do encontro do sujeito de «Canto Vesperal», do livro Transporte no Tempo, com a criança «inconcebível» e «incomensurável»: «Como te chamas tu que creio conhecer-te? E aquela criança então senhora da infância e do direito de dispor dela como dispõe da vida um suicida respondeu-me: Nada é o meu nome» (II: 20). Não será difícil imaginar este encontro entre o sujeito e um Billy the Kid (que é como quem diz: consigo próprio).

O planeta infantil é, também, um planeta ameaçado. Pela morte, claro está. Como vimos, a própria recuperação «fotográfica» do passado infantil pressupõe distância ontológica ou separação do sujeito. A par da afirmação peremptória de uma infância idílica (perdida), temos também a problematização de ela o ser ou não (idílica, entenda-se). É neste ponto que creio poder encaixar o motivo do corte com os alicerces genealógicos do sujeito. Se, como se nos diz no poema «cdc/dcd», «já a futura morte transparece / no pequenino rosto da criança» (I: 156), um outro modo de dizer esta presença é esse motivo. Por outras palavras, pretendo ver nele como que o «choupo» que falha no cenário infantil. E noto: o cenário é, na verdade, a visão do sujeito, uma visão que vitima o rememorado: «Renasce neste largo a minha infância…a consciência que provisoriamente sinto de voltar alguns anos atrás / a sensação que sei de reflectir sobre esse tempo / de ser um espectador…só essa consciência e sensação me fazem suspeitar / de que passou o tempo» (de «O jogo do chinquilho», II: 39). É a condição de espectador que lhe permite ver o fim. A morte desse mundo, o choupo que lhe falta, chega-lhe no momento da visão vitimadora (cf., ainda, o poema «Génese e desenvolvimento do poema», II: 36).

Em O Problema da Habitação, o motivo da ruptura genealógica revestirá três modos. Por um lado, hipotetiza-se aí as relações familiares: «talvez ainda tenha algumas tias / Talvez eu reconquiste ainda a minha tão perdida aldeia» («Imaginatio locorum», I: 78). Neste sentido, o que temos é um outro modo de dizer a dúvida que acomete o sujeito, noutros lugares da obra, quanto à realidade do passado. Em segundo lugar, o motivo aflora sob a forma de uma troca (ou uma falsificação) das origens familiares: «trocaram-nos os pais e mesmo os mais longínquos membros da família / caíram-nos ao lado as folhas e as vestes e os braços e as casas uma a uma» («Prince Caspian», I: 81). Por último, temos a negação aberta da figura paterna: «A ninguém nesta vida propriamente chamei pai» («Tempora nubila», I: 88).

Continuando esta negação da origem, em Boca Bilingue o motivo ressurge com ainda maior veemência. Constatamo-lo num poema como «José o homem dos sonhos», em que essa figura, que alteriza o sujeito, é um «homem sem pai e sem mãe» (I: 173). Também regressa o modo dubitativo que encontrávamos em Aquele Grande Rio Eufrates. O sujeito do poema «Certas formas de nojo» define-se da seguinte maneira: «O meu modo de ser / é todo este não ser possível perguntar e responder / Sou uma enorme dúvida estendida da cabeça aos pés / nem sei já se nasci ou se morri» (I: 127). Chamo a atenção, no exemplo vertente, para o desconhecimento do nascimento como forma de dizer a ignorância de uma qualquer origem.

Contudo, o verso que, porventura, coloca a questão nas suas implicações mais profundas pertence a «A morte da água». A referência, aí, à configuração genealógica por excelência é explícita: a árvore genealógica. Que é negada e, nesta negação, significa o apagamento da identidade do eu : «Acabou-se qualquer possível árvore genealógica, visível no anel do dedo. Acabou-se mesmo qualquer passado. É o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato» (I: 182). A anonímia do sujeito é, pois, correlativa da impossibilidade do passado. O eu, «longe de famílias e tensões, / alheio a elementos de curriculum, esquecido / até de prazos horas carreira promissora ou simples biografia / o homem vai buscar às árvores de pé pedidas pelo sol / a única possível genealogia» («Mercado dos Santos, em Nisa», I: 101), ganha a consciência de que se perde de si próprio. Dito de outro modo, aprofunda-se a cisão entre o ser do passado e o ser do presente. Falha, pois, a bio-grafia (a auto-bio-grafia) como coluna vertebral da identidade. A experiência do tempo é recobrada como uma subjectividade dispersa «em bocados, vítimas do vento / ficando aqui, ali, nalgum lugar que amamos» («Efeitos secundários», I: 107).

O motivo da ruptura genealógica dá a vez, a partir de Transporte no Tempo, à ideia de um passado irrecuperável. O passado, lugar da infância, tanto é considerado inacessível ao sujeito, como abertamente negado. Num dos poemas centrais de Transporte no Tempo, «Odeio este tempo detergente», a distância intransponível entre o sujeito e a infância é dada pelo conflito entre um tempo detergente (presente) e o tempo da sombra do relógio da aldeia: «Tive um passado agora inacessível um passado / tão alto como a torre do relógio da aldeia / que pontual pontua a passagem do tempo / um tempo não ainda um tempo detergente um tempo / afinal só visível no sensível alastrar da sombra / ao longo desse pátio» (II: 76). Como vestígio bio-lógico, o intervalo que medeia entre o passado e o presente é reduzido a uma pegada evanescente. Impõe-se, agora, a auto-reflexão que tematiza o carácter subjectivo da infância, isto é, da sua existência apenas como algo pensado. No longo poema «A margem da alegria», que dá o título ao livro de poemas que publicou em 1974, reconhece o sujeito ser a «a infância passada no presente pensada / até ficar nada da nossa pegada» (II: 124). Nega-se o passado, como lemos no poema «Em louvor do vento»: «não tenho passado nem coisas quaisquer a fazer acabo agora mesmo de nascer» (II: 145).

Mas, sobretudo, ao sujeito emudece a voz (própria) que o poderia narrativizar. É em Toda a Terra que esta incapacidade de contar a sua história se declara mais abertamente. No poema «Como quem escreve com sentimentos», o sujeito circunscreve-se a um presente fechado que não permite o trânsito em relação ao que (ou àquele que) o sujeito foi: «Estou sujeito ao tempo sou este momento / perguntam-me quem fui e permaneço mudo» (II: 178). Este emudecimento, correlativo do categórico «não tenho passado» («Em louvor do vento», II: 145), surge neste livro também aliado ao motivo do esquecimento (cf. SILVESTRE, 1997: 15). Esquecer a história pessoal é esquecer o nome que a diz: «Esqueço o nome esqueço a minha história», lemos no poema «A sombra o sol» (II: 272). O mesmo topos se revela, ainda, no motivo da fotografia que perde a virtude especular de devolver ao sujeito uma imagem. Veja-se, neste sentido, o seguinte verso de «Um dia uma vida»: «eu agora nem me revejo já / nessas fotografias nessas outras tantas mortes» (II: 232). As fotografias perderam a aura, ou se se quiser, enquanto suportes da fixação do eu deixam de devolver uma imagem identificadora.

Uma outra imagem que diz esta interrupção da história do sujeito é a de um Tempo que escreve os dias do eu lírico «sobre a areia». A areia é um suporte frágil desta história, um suporte que a não permite erigir em monumento historiográfico: «O tempo escreve dia a dia sobre a areia / palavra por palavra a pura história / de quanto por passar inecessário fui / e nem dessa beneditina história ficará memória» («Discurso branco sobre fundo negro», II: 209). A comparação com o dicurso historiográfico é assaz interessante. Aqui tem evidentemente um sentido subjectivo: o de ser impossível cristalizar em discurso a história individual do sujeito. No poema «Requiem por Salvador Allende» temos claramente enunciada a cisão entre uma história individual (interrompível) e uma instância transcendente que – chamemos-lhe História – continua a avançar: «Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós / que um homem se detenha quando a história caminha / em frente sempre altiva e serena / como mulher de muito tempo sabedora» (II: 207). A historiografia individual, não-beneditina, é reduzida, não sem ironia, a um conjunto de documentos que, na verdade, falsificam a identidade do eu: «Nenhum dos muitos meus dos mais autenticados documentos / terá dito talvez quem tenha sido / Aliás não fui muito até se fui quem fui» («Meditação anciã», II: 214).

O motivo da ruptura das origens genéticas encontra-se, pois, relacionado com o tema da identidade do sujeito. Simultaneamente, permite-nos corroborar a infância como um planeta a que faltam leis de gravitação: «Nenhum cordão umbilical nos prende por instantes a nenhum umbigo» («Vila Real», I: 103). Dito de outro modo, o motivo diz bem a falha mortal do planeta infantil ou, se se quiser ainda, reduz-lhe a densidade ontológica. A ruptura deve ser entendida, por último, como um gesto homicida (involuntário). O poeta, o homem das palavras que rememoram, no seu bilinguismo intrínseco, é um homicida justamente porque o seu uso da linguagem está marcado pela negatividade. No poema «A sombra o sol», incluído em Toda a Terra, lemos precisamente: «Esqueço o nome esqueço a minha história» (II: 272), questão de algum modo aflorada já em Aquele Grande Rio Eufrates: «Que te acontece que mais não fizeste anos [?]» («Missa de aniversário», I: 42). Ou, ainda, num verso com algum eco de Alberto Caeiro: «Nascemos e morremos e nada acontece» («Aquele grande rio Eufrates», I: 61). Não há uma gnoseologia que permita ao sujeito poético religar-se ao planeta infantil, nem palavras que suportem essa gnoseologia. Aqui encaixa o motivo do esquecimento enquanto gesto de interrupção que diz a fractura com o passado, motivo tão ou mais importante na poética beliana do que a própria rememoração. O próprio Ruy Belo responderia nos seguintes termos à pergunta «Tem boa memória?»: «Péssima. Aliás, mais do que a vida, mais do que o sono, do que eu gosto é do esquecimento» (III: 37). E não será o esquecimento (que nega a memória triunfal) um modo de faltar um choupo no «caminho da infância»?

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EDITORIAL

Na paisagem urbana que decora e pontua, o quiosque não é um local de encontro mas de consumo apressado e displicente. Não é sequer um lugar mas antes, na sua existência sígnica — periódicos & dinheiro —, uma versão plausível dos não-lugares em que se (des)faz a urbe contemporânea.

Ciberkiosk instalou-se nessa paisagem em Março de 1998 e, pelo menos para aqueles que desde então o dirigiram (Américo Lindeza Diogo, António Apolinário Lourenço, Fernando Matos Oliveira, Osvaldo Manuel Silvestre, Pedro Serra), as coisas não voltaram a ser as mesmas. Por um daqueles estranhos fenómenos em que o cibermundo é fértil, este kiosk tornou-se um ponto de encontro de muito mais gente do que alguma vez pudéramos suspeitar. O seu crescimento regular e exponencial, em colaboradores, ideias e visitantes, acabou por fazer dele um dos mais notórios não-lugares da net escrita em português (mas também em espanhol, em catalão, em francês ou em inglês). Um «albergue espanhol», dir-se-ia noutros tempos; um albergue virtual, dizemos agora, aceitando contudo a caótica liberalidade do modelo espanhol. Por outras palavras, Ciberkiosk marcou a paisagem e demonstrou, a todos os cépticos, a bondade de todos os itens do seu programa. A saber: que a net é um meio insuperável quando se trate de sublimar a pobreza de uma cultura material como a nossa (dos directores de Ciberkiosk, bem entendido, mas também a dos portugueses em geral); que as Humanidades nada perdem neste casamento com o cibermundo, que à partida lhes oferece o palco global de que as culturas periféricas tanto necessitam e que não lhes está a priori vedado; que as mesmas Humanidades, as Artes, etc., não podem deixar de somatizar esse casamento, desde logo pensando e interiorizando o virtual e o digital; finalmente, que nada é eterno nem fatal, como certos espíritos mais medíocres tanto gostam de argumentar entre nós.

Assim, não era e não é fatal que nos tenhamos de sujeitar à cultura corporativa de coisas tão velhas como o JL. Não era e não é fatal que tenhamos de pedir a benção aos budas sentados da nossa cultura doméstica. Não era e não é fatal que nada se possa fazer sem os apoios que certas instituições, e os seus komissários, prodigalizam.

Contudo, e como antes se disse, nada é eterno e Ciberkiosk nunca se desejou tal. No juízo dos seus directores (que não no dos seus colaboradores e leitores), é altura de pôr um ponto final nesta história. Uma bela história, diga-se, da qual nos ficará não apenas a melhor das recordações, mas sobretudo uma outra rede, sobreposta àquela que nos permitiu existir e insistir ao longo destes 4 anos: uma rede de colaboradores e amigos, uma pequena-grande comunidade discursiva que seguramente se não dissolverá e engendrará novas formas de intervenção neste ou noutros espaços públicos.

Resta-nos pois agradecer: aos nossos colaboradores mais directos e empenhados, que sempre trabalharam graciosamente para o enriquecimento deste kiosk; aos colaboradores pontuais, que num momento ou noutro fizeram questão de nos enviar textos especificamente para o Kiosk; aos nossos leitores fiéis, cujas sugestões acolhemos; às editoras que nos enviaram livros que, na medida das nossas capacidades, fomos recenseando; a Francisco Romão, responsável pelo grafismo da página; e a Juliana Goto e Leonardo Opitz, nossos webmasters.

A título de modesta retribuição a todos os que o foram fazendo, Ciberkiosk irá permanecer on line e, como até aqui, com acesso gratuito, por tempo indefinido. Qual monolito numa paisagem efémera, entre a letra e a imagem, a imediação sensorial das matérias e a espectralidade das linguagens: as nossas, as não-nossas, todas as que se acolhem a esse Kiosk que há quatro anos Enzensberger nos incitou a abrir e a que regressamos, sem fechar uma porta que aliás não existe:

O que têm sob os olhos,
minhas senhoras e meus senhores,
este bulício,
são letras do alfabeto.
Peço desculpa.
Peço desculpa.
Decifração complicada,
Eu sei, eu sei.
Uma impertinência.
Tê-lo-iam preferido audiovisual,
Digital e a cores.

Mas os que levam a virtual reality
de facto a sério,
digamos, por exemplo:
Percorresses tu de novo montes e vales,
ou: jamais tão só,
como em Agosto, ou ainda:
A noite estende o seu manto,
Esses satisfazem-se com pouco.

Vinte e seis
destes bailarinos a preto e branco,
mesmo sem placa gráfica
ou CD-ROM,
um lápis como hardware ¾
nada mais.

Peço desculpa.
Desculpe-me, por favor.
Não queria ser inoportuno.
Mas sabe como são estas coisas:
Há os que não perdem o hábito.

Hans Magnus Enzensberger, in Kiosk (1995)